Os diferentes gostos de domingo

Certas coisas cheiravam a certezas e tinham gosto de domingo, naquele tempo em que domingo ainda era feliz, naqueles dias que domingo significava respirar tão fundo e balançar na rede. Dias de acordar às 5 horas da manhã e ir até a mangueira, com aqueles olhinhos curiosos e uma caneca com açúcar e canela em mãos, maravilhada com a descoberta de que o leite não vinha em saquinhos.

Dias de jabuticaba no pé, vaga-lumes, visitas as plantações de café, passeios de camionete, cavalos selados, alface fresco na horta… Assim foi minha infância, grande parte dela passada em companhia do meu avô, por aqueles pastos, por aquele pomar com jabuticabas e mangas… e por mais urbana que eu seja, são aqueles dias de caçada de vaga-lumes, de andar de trator, de abrir porteiras e passear por entre os pastos, que ficaram na memória como as mais doces recordações do meu avô.

É o cheiro de pé de pitanga que sinto todo domingo e por mais que aquela primeira cadeira do lado esquerdo da mesa esteja vazia, são as mesmas histórias que ecoam pela minha mente quando olho pra ela.

Era sempre assim, ele sentava com uma latinha de cerveja com água tônica ou uma taça de vinho e repetia aquela história de como subiu naquele navio aos 16 anos e de repente estava no Brasil. As risadas ainda podem ser ouvidas ao fundo, quando ele narrava o inconcebível episódio do frango assado que ele esqueceu na mala. A história das três namoradas antes da vovó, o namoro com a vovó no cinema, as balinhas para distrair os cunhados, o casamento em Aparecida, naquele tempo onde não existiam estradas e os carros andavam só a 30 km por hora. O sorriso de canto de lábio e as histórias das caçadas de tatu, de espingardas e de laxantes em garrafas de café… Ah! As histórias com gosto de domingo!

As plantações, as idas até a máquina de arroz, as brincadeiras na palha, olhar admirada todo aquele maquinário que te fazia se sentir uma formiguinha, ficar toda orgulhosa no colo do seu avô, enquanto ele te ensinava como o arroz da palha, de repente, está dentro de um saco e voltar para casa senhora de si, carregando aquele primeiro pacote de arroz que você empacotou, como quem carrega o pote de ouro do fim do arco-íris.

Férias tinham gosto de bolo de milho e pamonha, naquelas tardes em que seu avô chegava com as espigas que tinha apanhado antes da colheita de verdade… e lá estava sua avó na beira do fogão, ensinando as mil coisas que você poderia fazer com o milho, quando, na verdade, você a olhava arteira, imaginando se não poderia roubar um ou outro milho para dar para os cavalos.

Domingo tinha um som peculiar… som de bolero, som de músicas antigas, som de Mercedita tocada na vitrola. Domingo tinha som de vovô… sentado naquele mesmo sofá, tentando entender as particularidades do controle remoto, aquele aparato semi-alienígena. Você sentava no tapete e ria, explicando como ligar. Depois ele veio a se tornar o expert dos controles remotos e descobriu as maravilhas da tevê a cabo e vocês passavam o dia vendo aqueles programas portugueses, onde você não entendia nenhuma das piadas e ele ria e falava daqueles “alfacinhas de Algarve”.

Os dias de shopping tinham gosto de reclamações, onde ele, impaciente, implorava para sua avó comprar logo o que tinha que comprar, mesmo quando ele não ia junto para as compras, ele reclamava quando demoravam… e esperava, sentado naquela poltrona em frente a porta de entrada, só para dizer : “caipiras que são assim, não podem ficar na cidade grande que já se deslumbram”.

Vovô adorava comprar carros, sua maior diversão era escolher camionetes, negociava por meses antes de comprar de fato. Adorava gado, cavalos, leilões e plantações. Vovô adorava dar bezerros de presente… e vovô adorava domingos.

E foi em uma terça que prometemos estar no final de semana naquele hospital, e foi em uma terça que minha mãe disse que ele tinha que melhorar porque no final de semana o levaríamos para casa. E foi em uma terça que ele sorriu e brincou pela última vez e foi em uma terça que ele balbuciou umas poucas palavras, as últimas palavras ditas. Mas esperou o domingo… aquele domingo que prometemos ir ao hospital para levá-lo pra casa e foi em um domingo que o cheiro de pitanga deu lugar ao cheiro mórbido das flores, e foi em um domingo que as gargalhadas deram lugar aos olhos inchados e ao choro. E foi em um domingo que cumprimos nossa promessa, e foi em um domingo que o levamos pra casa, mas não do jeito que queríamos, mas foi em um domingo… assim que chegamos no hospital, porque os domingos eram os nossos domingos… porque minha mãe tinha dito e prometido que meu irmão estaria lá… naquele domingo… e que o levaria pra casa… foi em um domingo.. o último domingo.

Maahh
Enviado por Maahh em 28/11/2008
Código do texto: T1308138
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