Minha Alma Latina
Quando convencida pela eloqüência de um amigo li, nas férias de 1983, AS VEIAS ABERTAS DA AMÉRICA LATINA, do uruguaio Eduardo Galeano, mesmo um tanto chocada, um sentimento aflorou intenso. Era a consciência do pertencimento a algo maior do que a minha brasilidade: vivia na América Latina, espoliada e explorada em séculos de invasões territoriais e culturais. E mais: ser latino-americana alargava meu olhar e sentimento para além de fronteiras geográficas. Senti-me “hermana” na utopia revolucionária, nos traços culturais, na consciência da luta por justiça e dignidade.
Culturalmente, sempre me senti muito próxima, principalmente em relação à música e a uma voz, que mais que todas, teve uma importância fundamental na construção do meu ethos latino, no meu sentimento de “pertença”: a da argentina Mercedes Sosa e ouvi-la sempre me emocionou muito. “Vivimos tantas pasiones/Con el correr de los años/Somos de sangre caliente/Y de sueños postergados/Yo quiero que estemos juntos/Porque debemos cuidarnos/Quien nos lastima no sabe/Que somos todos hermanos.”
Esta semana realizei mais um dos meus sonhos: vi Mercedes cantar. Aliás, ouvi mais do que vi, pois emocionada fechava os olhos a cada música cantada. É claro que tantos anos depois a voz não é mais a mesma, Mercedes não é mais a mesma, eu não sou mais a mesma, mas o canto que representou para tantos a resistência e a luta pela liberdade está vivo em cada acorde, em cada letra escolhida.
“Volver a los diecisiete después de vivir un siglo/es como descifrar signos sin ser sabio competente,/volver a ser de repente tan frágil como un segundo/volver a sentir profundo como un niño frente a Dios/eso es lo que siento yo en este instante fecundo.” Na emoção, uma avalanche de lembranças de amigos queridos que, certamente, estariam ali conosco, mas que a ausência física entre nós impede. As minhas lágrimas não eram só de saudades, mas de certeza de eles estavam ali comigo,vibrando na mesma sintonia dos sonhos e crenças que afirmamos e partilhamos.
Mercedes foi/é testemunha viva da história de luta pela liberdade, contra os regimes totalitários, principalmente neste lado debaixo do Equador. Hoje, com 73 anos, mais de 50 anos de carreira, sua voz única passeia por canções transformadas em hinos entre seus admiradores. Sabe, como ninguém, escolher parceiros/compositores.Violeta Parra, Victor Jarra, Milton Nascimento, Fito Paes, Caetano Veloso, são alguns dos compositores escolhidos e por isso que se diz que Mercedes canta o continente.
Minha alma latina vibrou com La Negra e a beleza do seu canto, alimento do sonho pela liberdade e disposição para a luta, pois cada vez em que suas canções foi instrumento de expressão do sentir e do pensar de um povo, nosso sentimento de latinidade se fortaleceu . “Solo le pido a Dios/Que la guerra no me sea indiferente,/Es un monstruo grande y pisa fuerte/Toda la pobre inocencia de la gente.” No meu exercício cotidiano de SER, esta é uma das minhas “orações”.
“Gracias a la vida que me ha dado tanto/me dio dos luceros que cuando los abro/perfecto distingo lo negro del Blanco/y en el alto cielo su fondo estrellado/y en las multitudes el hombre que yo amo...”
Sim, agradeço. Ouvir Mercedes renova minhas esperanças e embeleza, ainda mais, minha vida.