ENCHENTE EM SANTA CATARINA

- Se a água continuar subindo assim, às 15 horas ela entrará em nossa casa. – Papai fez essa previsão depois de rabiscar por longo tempo num caderninho. Ele andara enfiando estacas na beira do rio e acompanhara a enchente no relógio.

Ao contrário que possa parecer, fez essa afirmação sem dramaticidade, apenas como constatação. Minha mãe que não dormira direito e colocara um blusão de lã ao avesso sem perceber, ficou mais nervosa ainda.

- No rádio diz que o rio vai continuar enchendo porque as chuvas não param – disse muito devagar, controlando os nervos.

Eram 7 horas da manhã daquele dia 18 de agosto de 1965. A chuva estava fininha, mas poderia recrudescer a qualquer momento, como estava ocorrendo nos últimos dias. A fumaça subia do fogão à lenha e minha mãe, que se movimentava mal por conta de um acidente, ajeitava o bule de café sobre o fogão, nervosamente. Os olhos estavam fixos na panela com leite, para que não fervesse por cima, derramando o líquido sobre a chapa do fogão. Na verdade ela não queria olhar para a janela. O frio era intenso, os vidros embaçados, mas não o suficiente para esconder o perigo externo. Quando ela salvou o fogão da enchente do leite, saiu capengando para o quarto, exasperada com a calma do seu marido.

Nossa casa ficava numa elevação. Ao leste havia o laranjal, ao norte uma estradinha ligava a estrada que serpenteava acompanhando o Rio Uruguai em direção a Mondai; A oeste havia um regato que atravessávamos a pé por um pontilhão de prancha, rumo a Itapiranga, quando não havia cheia. Atualmente ele estava represado formando um extenso lago; Ao sul corria o Rio Uruguai que nos separava do Rio Grande do Sul. Com a correnteza seis vezes mais rápida pela enchente, mostrava o drama que a acompanhava. Neste amanhecer frio, a névoa deixava entrever toda a carga que o rio levava. Muitos galhos, árvores inteiras, telhados de casas e galpões, canoas sem remadores e até um cachorrinho ganindo e latindo em cima de um tronco. Um cortejo triste e espetacular.

A casa tinha 13 por 9 metros e era alta de um lado, onde havia sido aproveitado o desnível do terreno para escavação de um amplo porão. O soalho de tábuas beneficiadas e muito bem enceradas a separava do porão. Era o nosso lar, de tantas lembranças. Minha mãe ordenara a mim e meus irmãos que tirássemos tudo que havia de útil no porão e transportássemos para um galpão que havia à nordeste, a 100 metros de casa.

Os cálculos de meu pai eram exatos. A água começou a entrar no porão às 14 horas e 30 minutos. Um estranha vibração se apossou de mim, aos meus 13 anos. O ineditismo da enchente dava uma certa euforia, enquanto a ameaça da água provocava medos. Impressionante eram as vagas que avançavam pelo terreno.Eram ondas baixas e fortes que se intercalavam com menos de meio minuto. A água vinha, qual ondas no mar e atingia um certo lugar, depois recuava. A próxima vaga ia um pouco mais além. Nesse vai e vem das vagas o rio subia 75 centímetros por hora.

Uma dessas vagas passou na frente da casa juntando-se às águas do regato represado ilhando a casa. Eu não tinha internalizado todo o drama até o momento que vi papai entrar dentro de casa com o machado de rachar lenha na mão. Acompanhei-o mudo e me assustei quando ele foi ao quarto que ocupava com a mãe e assestou a pontaria sobre o soalho, próximo da parede. Na terceira tentativa vi que arrancara três tábuas estreitas do soalho, numa extensão de menos de dois metros. Depois foi ao quarto de minha irmã e fez o mesmo. Ante meu olhar de espanto explicou:

- Quando a água vier, ela deve entrar dentro de casa. Se ela não conseguir vai levantar a casa a partir do soalho. – Foi assim que entendi, pela primeira vez que a situação que me empolgava podia levar a nosso lar, com o vento leva uma folha de uma árvore. Embora tivesse ouvido antes sobre o perigo, só agora eu me deparava com a situação real.

Continuamos a transportar as coisas de valor e perecíveis de casa ajudados por vizinhos que moravam mais alto. Onde antes passávamos a pé enxuto, a água batia nas canelas. Depois nos quadris. Terminamos de salvar as coisas mais importantes em cima de um bote, com cordas, esperando a folga na correnteza para poder passar. As vagas continuavam mas o local onde batiam ficava muito adiante. O intervalo entre uma e outra dava uma espécie de calmaria que aproveitávamos para atravessar o bote. Se ele caísse na corrente do rio, não haveria remador que conseguisse detê-lo.

Quando não conseguimos mais fazer a travessia porque a correnteza já era muito forte, fomos até a estrada observar melhor. Já ia escurecendo e a temperatura estava em torno de zero grau Celsius. Durante esta loucura toda eu não sentira frio nenhum, permanecendo apenas de calção, descalço e sem camisa. Nesse momento comecei a estremecer de frio. Um parente, que viera a cavalo me deu o pesado ponche, que arrastava no chão quando eu caminhava. Aquela capa que cobria cavaleiro e parte do cavalo era grande demais, mas aquecia.

Ficamos assim, como quem assiste um espetáculo macabro, observando a ação das águas sujas do Rio Uruguai. O laranjal adulto, com árvores grandes, servia para deter uma parte do ímpeto das águas, formando redemoinhos ao seu redor e provocando sons assustadores. Os galhos vergavam, alguns se quebrando, mas conseguiram fazer com que a fúria do correnteza não atingisse a casa em cheio.

Hoje, morando no Amazonas, onde as enchentes são cíclicas, onde a correnteza não aumenta de velocidade nas cheias, nem diminui na seca, assisto a repetição do drama no meu estado natal. Quando desvio os olhos do noticiário da televisão, me vem a mente a figura da minha mãe desviando os olhos da janela para não ver a desgraça iminente.

As árvores, mais a idéia do papai de rasgar o soalho com o machado preservaram o lar da minha infância. As notícias que vejo na televisão trazem de volta as lembranças que eu não queria mais que aflorassem.

Luiz Lauschner
Enviado por Luiz Lauschner em 28/11/2008
Reeditado em 28/11/2008
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