Tempestades são-paulinas
Começo lhe dizendo, meu tolerante leitor, que adoro São Paulo. Menos em tempos de trovoadas.
Abomino as tardes paulistanas de relâmpagos, de trovões, e de chuvas atrevidas, causadoras de enchentes impiedosas.
Não nego: tenho medo das tempestades são-paulinas. Moro na Bahia, e, aqui, a natureza é mansa; é meiga; carinhosa; e até dengosa.
Mas por que escrever sobre as tempestades de São Paulo, se Salvador tem assuntos para alimentar milhares de crônicas?
Por que, em vez de falar dos dilúvios paulistanos, não escrever uma crônica sobre o mar de Itapuã que, no fim de semana, vi tranqüilo e sedutor?
As procelas de Sampa não são coisas d´agora. Elas vêm de muito longe. Mais adiante, direi quando, talvez pela primeira vez, delas se teve notícias.
Deu-me na cuca abordar este assunto, depois que vi, neste final de tarde, pela TV, o devastador toró que, mais uma vez, desabou sobre a capital paulista, onde mora meu netinho Bernardo.
Os rios Pinheiros e Tietê transbordaram; o tráfego virou um caos; a São João alagou; o Aeroporto de Congonhas fechou; e a Avenida Paulista, apesar de protegida por centenas de pára-raios, plantados nos seus imponentes arranha-céus, viveu momentos difíceis.
Foi, pelo menos, o que ouvi dos repórteres que, embora acostumados com os aguaceiros vespertinos de Sampa, se mostravam angustiados.
Quando estou em São Paulo, suas tempestades dificilmente me surpreendem em plena rua. Ao ouvir o primeiro trovão, cuido de pegar o caminho de casa. Ou entro no cinema mais próximo. E só saio do meu improvisado refúgio, quando constato que o céu é da garoa e não dos relâmpagos.
Mas por que este medo todo?
Trauma de infância, meu bem. Eu criança, morando nos cafundós do sertão do Ceará, nos dias de temporal, assistia, lívido, minha família entrar em pânico.
Era um tal de queimar os ramos bentos, recebidos no último domingo da Quaresma; de virar espelhos contra a parede; e de rezar, rezar, rezar...
Minha aflição aumentava, quando me lembrava que os pára-raios de minha acanhada cidade natal eram os coqueiros dos quintais.
Dizia acima, que as tempestades são-paulinas não são coisas do nosso tempo. Pois é. Em 1560, o padre José de Anchieta já se referia a elas, na carta que endereçou aos seus superiores, descrevendo as "inúmeras coisas naturais", que encontrou na Província de São Vicente.
A missiva, além do clima e do tempo, trata, também, dos indígenas, de plantas medicinais, de formigas, de aves, de tatús, de papagaios, de abelhas, de cobras, de aranhas, de escorpiões e de macacos.
Por isso, ela é acolhida como uma admirável contribuição do beato Anchieta à história natural brasileira; como observou quem a traduziu do Latim.
Escreveu o jesuíta: "Na primavera, que começa em Setembro, e no verão, que principia e argumenta em Dezembro; caem chuvas, abundante e continuadamente, acompanhada de raios e trovões."
E prossegue: " Então crescem os rios e se inundam os campos; por essa ocasião sai do leito do rio uma grande multidão de peixes, e se deixam apanhar com muita facilidade, coisa que de certo modo conjura a fome, originada pela inundação dos rios, e compensa os prejuízos."
Peixes que se deixam apanhar com facilidade, matando a fome...
Hoje, a carta do beato seria diferente.
Ele estaria mentindo se, por exemplo, em epístolas, afirmasse que os pobres de São Paulo matariam a fome ao se entregarem a uma pescaria no Tietê, no Pinheiros, ou no Tamanduatei, em tardes de inundações pluviométricas. Peixes? Que peixes?
Meu, quase santo, José de Anchieta, neste início de milênio, o terceiro, as coisas, em Piratininga, mudaram muito. Mas seus pesados aguaceiros de verão continuam a cair; como você os descreve, na sua interessante missiva; e produzindo os mesmos efeitos; daninhos, claro.
Caro beato, sempre que a nossa São Paulo naufraga no que você chamou de "tempestades repentinas", aparece alguém garantindo, que aquela será a última catástrofe.
Poucos, porém, acreditam nisso. Sabem que as promessas, solenemente alardeadas, se diluem, sutilmente, nas malcheirosas enxurradas, provocadas pelas tempestades são-paulinas, as águas de janeiro...
Começo lhe dizendo, meu tolerante leitor, que adoro São Paulo. Menos em tempos de trovoadas.
Abomino as tardes paulistanas de relâmpagos, de trovões, e de chuvas atrevidas, causadoras de enchentes impiedosas.
Não nego: tenho medo das tempestades são-paulinas. Moro na Bahia, e, aqui, a natureza é mansa; é meiga; carinhosa; e até dengosa.
Mas por que escrever sobre as tempestades de São Paulo, se Salvador tem assuntos para alimentar milhares de crônicas?
Por que, em vez de falar dos dilúvios paulistanos, não escrever uma crônica sobre o mar de Itapuã que, no fim de semana, vi tranqüilo e sedutor?
As procelas de Sampa não são coisas d´agora. Elas vêm de muito longe. Mais adiante, direi quando, talvez pela primeira vez, delas se teve notícias.
Deu-me na cuca abordar este assunto, depois que vi, neste final de tarde, pela TV, o devastador toró que, mais uma vez, desabou sobre a capital paulista, onde mora meu netinho Bernardo.
Os rios Pinheiros e Tietê transbordaram; o tráfego virou um caos; a São João alagou; o Aeroporto de Congonhas fechou; e a Avenida Paulista, apesar de protegida por centenas de pára-raios, plantados nos seus imponentes arranha-céus, viveu momentos difíceis.
Foi, pelo menos, o que ouvi dos repórteres que, embora acostumados com os aguaceiros vespertinos de Sampa, se mostravam angustiados.
Quando estou em São Paulo, suas tempestades dificilmente me surpreendem em plena rua. Ao ouvir o primeiro trovão, cuido de pegar o caminho de casa. Ou entro no cinema mais próximo. E só saio do meu improvisado refúgio, quando constato que o céu é da garoa e não dos relâmpagos.
Mas por que este medo todo?
Trauma de infância, meu bem. Eu criança, morando nos cafundós do sertão do Ceará, nos dias de temporal, assistia, lívido, minha família entrar em pânico.
Era um tal de queimar os ramos bentos, recebidos no último domingo da Quaresma; de virar espelhos contra a parede; e de rezar, rezar, rezar...
Minha aflição aumentava, quando me lembrava que os pára-raios de minha acanhada cidade natal eram os coqueiros dos quintais.
Dizia acima, que as tempestades são-paulinas não são coisas do nosso tempo. Pois é. Em 1560, o padre José de Anchieta já se referia a elas, na carta que endereçou aos seus superiores, descrevendo as "inúmeras coisas naturais", que encontrou na Província de São Vicente.
A missiva, além do clima e do tempo, trata, também, dos indígenas, de plantas medicinais, de formigas, de aves, de tatús, de papagaios, de abelhas, de cobras, de aranhas, de escorpiões e de macacos.
Por isso, ela é acolhida como uma admirável contribuição do beato Anchieta à história natural brasileira; como observou quem a traduziu do Latim.
Escreveu o jesuíta: "Na primavera, que começa em Setembro, e no verão, que principia e argumenta em Dezembro; caem chuvas, abundante e continuadamente, acompanhada de raios e trovões."
E prossegue: " Então crescem os rios e se inundam os campos; por essa ocasião sai do leito do rio uma grande multidão de peixes, e se deixam apanhar com muita facilidade, coisa que de certo modo conjura a fome, originada pela inundação dos rios, e compensa os prejuízos."
Peixes que se deixam apanhar com facilidade, matando a fome...
Hoje, a carta do beato seria diferente.
Ele estaria mentindo se, por exemplo, em epístolas, afirmasse que os pobres de São Paulo matariam a fome ao se entregarem a uma pescaria no Tietê, no Pinheiros, ou no Tamanduatei, em tardes de inundações pluviométricas. Peixes? Que peixes?
Meu, quase santo, José de Anchieta, neste início de milênio, o terceiro, as coisas, em Piratininga, mudaram muito. Mas seus pesados aguaceiros de verão continuam a cair; como você os descreve, na sua interessante missiva; e produzindo os mesmos efeitos; daninhos, claro.
Caro beato, sempre que a nossa São Paulo naufraga no que você chamou de "tempestades repentinas", aparece alguém garantindo, que aquela será a última catástrofe.
Poucos, porém, acreditam nisso. Sabem que as promessas, solenemente alardeadas, se diluem, sutilmente, nas malcheirosas enxurradas, provocadas pelas tempestades são-paulinas, as águas de janeiro...