Canoro carro de boi
Morando em Belo Horizonte há algum tempo, é natural que eu sinta, de vez em quando, saudade pungente da minha infância em Porteirinha, quando a vida transcorria modorrenta e sem novidades, apenas entrecortada pelo ringir dolente de ronceiros carros de bois ou dos lânguidos cocoricós dos galos na soalheira vespertina.
Os tempos são outros e não há como ir contra a marcha natural das coisas, pois, até naquela cidade, a agitação própria dos nossos dias turbulentos chegou. O mundo transformou-se numa aldeia global, como vaticinara o sociólogo canadense Marshall MacLuhan, no final da década de 60.
Mas não pagamos tributo algum em rememorar o passado, ainda que seja para se fazer um contraponto com a realidade atual.
Do sétimo andar do prédio onde moro, próximo à Praça da Assembléia, tenho uma visão de 360 graus do meu entorno ruidoso, onde os veículos, qual formigas, pululam num vaivém frenético. Evidentemente, em nada parecido com a Porteirinha que deixei em 1970, quando, à minha porta, ao rés-do-chão, estacionavam dezenas de charretes e carros de bois, enquanto seus donos se dirigiam à feira sabatina, a dois quarteirões da minha casa.
Enquanto o note-book repousa sobre a mesa, conectando-me em frações de segundo com qualquer parte do mundo, contemplo a majestosa Serra do Curral ao longe, de onde vem a brisa constante que balança a diáfana cortina branca. Neste particular, há algo parecido com a minha pequena aldeia, privilegiada com o maciço da Serra do Espinhaço fazendo divisa natural com municípios limítrofes, de onde emana benfazeja aragem para aplacar, como antídoto, o calor senegalesco que assola o Norte de Minas.
Já que as comparações permeiam essas minhas reminiscências, não quero aqui recordar de bielas, semi-eixos, carburadores e platinados. Quero lembrar-me das partes que compunham um carro de boi, que era o veículo em maior número na cidade, principalmente porque sempre achei esses nomes muito sonoros e diferentes.
Todavia, apenas os iniciados nessas miudezas – que passam despercebidas à grande maioria – estarão aptos a identificar, sem ajuda, o que seja um canzil, um cocão, os fueiros, a brocha, a canga, a mesa, o eixo, a longarina e quejandos...
Assim também, somente quem morou em pequenas cidades do interior teve oportunidade de ouvir o ringir de um cocão azeitado. Em época de melancia, então, o canto lamurioso dos pachorrentos carros de boi era ouvido a distância, evocando saudade e aguçando o paladar. Traziam também água do rio Mosquito, lenha para os fogões, transportavam pessoas para as festas de batizados, de casamentos e até para as cerimônias fúnebres, muitas vezes conduzindo o féretro.
Mas havia uma peça fundamental nesses veículos: o seu “motor” de dois cavalos, digo, de dois mansos bois carreiros. Eram bois robustos, adestrados para a pesada faina.
Lembro-me que o freio e o acelerador desses veículos eram na base de “ôôas” e “êêias” gritados pelos condutores, e prontamente acatados pelos quadrúpedes ruminantes.
Essas parelhas de bois sempre eram – e acho que ainda são – batizadas com nomes pitorescos e diferentes, para que a sonoridade não pudesse ser confundida pelos atentos ouvidos bovinos, o que traria dificuldade no manejo pelo condutor.
Assim, para facilitar o acatamento das ordens, já vimos muitas parelhas denominadas “Mineiro e Brasileiro”, “Mulato e Branquinho” e “Raio e Trovão”. A “Rochedo e Canadá”, por exemplo, ficou famosa em crônica do notável escritor montes-clarense João Valle Maurício, que relatava “cantada” do compadre à comadre, rimada com o nome dos bois que puxavam o carro que os conduzia.
Outra parelha que ganhou fama, até além das fronteiras municipais, foi a que pertencera ao saudoso e folclórico Joaquim Costa, de Porteirinha. Ele tinha mania de ser singular em tudo: da “malca” do relógio, que ninguém “pissuía” outra igual, até os nomes dos seus bois carreiros, apelidados por ele, por incrível que pareça, de “A-lê-al” e “Bê-a-lê-bal”, como se estivesse soletrando AL e BAL, no alfabeto baiano. E o boi de guia, apenas para rimar, fora batizado de “Etcétera e tal”.
Até hoje ecoa em nossos ouvidos o matuto Joaquim Costa manobrando, com estrépito, seu carro de boi pelas ruas da cidade:
- Volta “A-lê-al”!... Carrega “Bê-a-lê-bal”!... E ocê, “Etcétra e tal”, tá fazeno o quê? Ôôôaaaa...