A Poesia no Divã
- Senhora Poesia!
- Sou eu.
- Sente-se no divã.
- (...)
- Conte-me sobre você.
- Eu estou com crise de identidade. Não sei mais quem sou. Não acredito no que eu mesma versejo.
- Há quanto tempo se sente assim?
- Nem faço idéia. Acho que faz muito tempo.
- Fale mais.
- Eu não consigo mais saber o que sinto. Às vezes estou triste; outras vezes, alegre. Numa hora quero viver eternamente; na outra, quero morrer. Eu ando ouvindo o canto das estrelas. Estou ficando louca. Por algum momento, me organizo metrificamente; em outro momento, meu “versamento” se perde em versos brancos.
- Algum problema na vida amorosa?
- Todos. Eu amo demais e, no mesmo instante, odeio infinitamente ou um segundo sem fim. Então, torno a amar além da primavera.
- Que lembranças lhe trazem a sua infância?
- Já não sei mais a minha idade. Pareço ter todas as idades. Na infância, eu gosto de brincar de rima fácil, de rodopiar etc. Na adolescência discordo de tudo, apaixono-me... Já não sei mais. Na idade adulta, reflito sobre tudo, creio em tudo e não creio em nada. Fico querendo me matar ou viver e transmitir minha vida pra quem eu encontrar. Na velhice, tudo recomeça e tudo acaba e tudo vira do avesso. Nem faço idéia se o que eu disse agora é mentira ou verdade.
- Seu problema é poeticidade múltipla associada a uma confusão conotativa com resquícios de denotação, cujo tratamento se baseia em deixar as folhas em branco por várias horas o máximo de tempo que puder.
- Assim poderei ficar curada, doutor?
- Talvez. Com muita disciplina e pouca imaginação, certamente!
- Eu certamente já estarei extinta. (A poesia, em voz baixa.)
- O que disse, dona Poesia?
- Divagações, divagações...
- E o tratamento prescrito?
- Eu o cumprirei até o nascimento de um novo poeta.