O SOBRADO

O barulho ensurdecedor das estacas ao lado de minha casa continua a martelar-me os ouvidos, é tão forte que afugenta o sossego e atrapalha o raciocínio.

Nesse terreno teve início a construção de um prédio de doze andares. Em breve ninguém se lembrará que ali existiu a casa que chamávamos de sobrado onde moraram os nossos melhores amigos, o médico, sua esposa e dois filhos: uma graciosa menina que conhecíamos por Mana e seu irmão aprendiz de pianista, inteligente e dedicado tornou-se um adulto bem situado na vida como não poderia deixar de ser.

É preciso conter a tristeza que me invade ao ver o terreno tão castigado para que nele seja erguido mais um edifício residencial.

No sobrado as nossas crianças brincavam, tomavam banho na piscina que foi motivo de muitos sustos e por isso ganhou um gradeado, precaução contra acidentes imprevistos. Tento desligar-me da barulheira infernal para concentrar-me em boas lembranças.

Nas noites de Ano Novo, depois de reunir-se em torno da mesa festiva a família do sobrado convidava os vizinhos para acompanhá-la no primeiro banho do ano na piscina, regado à champanhe e petiscos variados. Tornou-se hábito, quando não aparecíamos o médico vinha pessoalmente saber o que havia acontecido, insistia até convencer-nos a acompanhá-lo. Sua esposa e os filhos nos esperavam dentro da piscina e nos recebiam de braços abertos.

Fecho os olhos e vejo as crianças a correr e a gritar felizes pelo quintal, quase gêmeas eram as nossas casas, separadas por um muro de pouca altura.

Enquanto as estacas perfuram o solo sem dó nem piedade procuro explicações para o inexplicável desenlace de uma família como aquela. A última notícia a respeito de Mana, a menina que sonhava tornar todo mundo feliz, depois de um casamento desfeito emigrou para a Alemanha onde esperava encontrar a chave do sucesso e do amor perfeito.

Por muitos anos, triste e impotente o sobrado resistiu às muitas reformas e agressões de inquilinos. Todos o ocuparam durante pouco tempo, caminhões de mudança chegavam e logo partiam; janelas e portas novamente trancadas.

Muitas reformas aconteceram no sobrado. Quando o último inquilino o abandonou, os carroceiros vieram em horas discretas para retirar telhas, lâmpadas, e tudo quanto foi possível carregar.

Devagarinho restou a carcaça de um sobrado entregue à própria sorte. Ali se alojaram em recantos convidativos grandes casas de cupins, gulosamente devoraram as raízes das árvores até exterminá-las. No quintal a piscina foi soterrada há muitos anos atrás, quando no imóvel funcionou um colégio.

Afinal, o que aconteceu com a família do médico?

Apesar de sua ótima localização e aparência sólida o sobrado vivia desocupado até que o maestro Nelson Ferreira instalou-se com a família. A nossa alegria durou pouco, os compromissos inadiáveis o levaram de volta para Recife e o sobrado novamente foi posto à venda.

Comprado por um empresário de Limoeiro tornou-se o lazer da família nos fins de semana até ser habitado por uma senhora, a sogra do empresário. Tornou-se a guardiã enquanto não aparecia novo comprador.

Um belo dia, quando a placa de “Vende-se” foi retirada, não demorou o caminhão chegou com a mudança, seguido de um casal, dois filhos, dois cachorros, o cunhado e a empregada, senhora idosa, disposta e muito simpática.

Afinal a vida pulsou de verdade dentro daquelas paredes, a família do médico viera para ficar.

A apatia das manhãs deu lugar ao piano tocado pelo menino seguido de gritos da sua geniosa irmã. O cunhado mantinha-se reservado, por ser especial às vezes agia e falava como criança. Foram anos muito felizes.

Naquele verão eles partiram para um fim de semana na longínqua praia de Carne de Vaca para a inauguração da casa de veraneio. Parecia um programa perfeito. Quando o nosso amigo médico saiu para pescar em companhia do sobrinho, um menino inteligente e bonito a quem muito estimava, a criança escorregou e caiu na água. Sem pensar duas vezes mergulhou para tentar salvá-la e ambos se afogaram.

Antes do anoitecer chegou a triste notícia. Ainda incrédula corri ao cemitério, ali encontrei a desolada viúva à espera dos corpos que em breve teriam de ser velados. A perda repentina tornou insuportável a vida entre aquelas paredes.

Restaram apenas lembranças felizes e a família partiu para nunca mais voltar.

Dentro de alguns anos, quem passar por essa rua verá o belo edifício de doze andares no mesmo lugar em que um dia existiu o sobrado.

MCC Pazzola