Remémorer

Você vem à Europa. Junto, fantasias que o cinema exibiu e criou. Não tanto pelos filmes europeus, pois a maioria dos que se via no início dos anos 70 já era made in Hollywood. Como o (glicêmico) “Candelabro (“Al di là... ”) italiano” (Rome Adventure). Mas havia também “Golpe à Italiana” (The Italian Job), protagonizado pelo britânico Michel Caine, cujo astro, porém, era o sempre charmoso Mini Rover, que a BMW, depois, redesenharia e lançaria como Rover (se a moda pega – a Volkswagen já tem o New Beetle – a Ferrari terminará por repaginar a Cinquecento... ).

Mas o hábito de quedar-se em leitura e pensamento, na companhia de café, livro, cahier, é tão real a vinte e quatro quadros quanto entre uma baforada e outra. Pois como imaginar um Sartre e uma Simone de Beauvoir no Café de Flore, não exatamente sem o cigarro, mas sem – ela? Malgrado tosse, pigarro, as coisas todas, a fumaça compõe a cena, abruma o pensamento, liga o céu à terra. E lembra ao pensador (em transe) que ele também é transeunte. Com a exceção dos desenhos animados, o primeiro século de cinema seria outro sem ela.

Eu, porém, não consegui. Nunca terminei um Gauloises, sequer um Gitanes. Contentava-me com o Marlboro Lights, fingindo não ouvir a piadinha besta do anão laçando vira-lata, em contraste com o cowboy viril a domar mustangs... (a propaganda do Marlboro “autêntico” fazia vistas grossas às emblemáticas seqüências de “Os Desajustados” (“The Misfits”))

Mas Paris era em primeiro lugar a Biblioteca Nacional da rue Richelieu. “BN”, para os íntimos. O pé-direito da Salle des Imprimés, a Salle des Catalogues, e tudo o mais que eu só conhecera pelo filme-documentário de Alain Resnais, Toute la mémoire du monde. Dele, eu guardara a estranha imagem dos abajures nas mesas, sem jamais pensar que fosse algum dia usá-los... A sensação de estar ali era por si só um exagero. Como os tipos verdadeiramente bizarros ao redor.

Havia um senhor, circunspecto, pontual (era sempre um dos primeiros a entrar na sala de leitura), mas, acima de tudo, o próprio asseio em figura de gente. Não bastasse lavar mãos e rosto, lavava a pia e o entorno com dedicação exemplar! Já outro, matemático inglês, encoberto pela coluna de livros à mesa, volta e meia lançava um urro já conhecido dos funcionários e habitués da casa.

Mas todos nós, até então protegidos do mundo exterior, formando estranha e provisória confederação de nacionalidades, objetos de pesquisa, línguas e costumes, todos nos precipitamos para o saguão do prédio, quando, certa vez – obra generosa da fantasia –, Catherine Deneuve, la belle de jour em pessoa, deu-nos o ar da graça! A sua aparição, meteórica, fulminante, inexplicada, devolveu-nos por instantes a humanidade cuidadosamente refreada.