DE TUDO QUE FICOU PRA TRÁS
Um cheiro de planta na manhã fresca dessa primavera resistindo ao calor do verão, traz à tona um tempo e palavras que me transportam à longínqua estrada de chão batido que atravessava a vila onde nasci e me criei. Os movimentos e aconteceres do dia a dia eram tão raros e repetidos que pra mim a Andradas, a rua calçada e em curva que iniciava na pracinha e se ia lá pro fim do mundo até um lugar chamado Morro das Pulgas, não continha nenhuma novidade. Na esquina defronte à pracinha ficava o cinema Imperial, um prédio grande para a população que o frequentava, muito sólido, de cor cinza com seu nome em relevo em tom mais claro. Na entrada, um bar com sorveteria, móveis escuros de madeira, piso em cerâmica clara com desenhos escuros, ao gosto da década de quarenta quando foi construído, e uma escada que conduzia a uma porta larga que dava acesso à sala de projeções. Ao lado deste, em sequência, três casas muito grandes. A primeira, que pertencia ao dono do cinema e de próspera fábrica de calçados, era ver um castelinho com sua torre e uma escadaria até um segundo piso aonde havia um belo espaço com colunas e murinho baixo que era a entrada principal. A segunda, um quadrado sólido com ornamentos em saliências nas paredes, lindas portas e janelas, era a Villa Ida, nome de sua dona, uma mulher refinada para alguém que morava no interior, esposa do dono do curtume, cujo filho era alto e elegante, talvez um príncipe na minha maneira infantil de olhar aquela paisagem diferenciada. A terceira, um sobrado que olhava de cima as acanhadas casas de alvenaria pequenas que se espalhavam pelo resto da rua. Mais adiante, já onde a rua fazia uma curva acentuada, uma casa ampla era onde funcionava a pensão do seu Jacobus, e havia sempre uma menina pulando corda na calçada e até hoje na minha memória aquela rua não existe sem esses personagens.
Nossa casa se localizava na comprida estrada que se ia até a Vila de Hamburgo Velho na saída, e para dentro seguia até a baixada nas proximidades do rio dos Sinos. Nela morava a própria história da colonização alemã, pois fora residência, escola e casa paroquial em tempos passados, nos anos de mil oitocentos e cinquenta. Havia muitos móveis antigos, especialmente camas que o restante era bem escasso e se resumia a algum guarda- roupa e uma mesa oval que pertencera a algum parente que rejeitara aquela relíquia para trocar por móveis novos. Além da mesa , um sofá provavelmente importado pelos mesmos que o deixaram para minha bisavó, quando ela passou a ocupar esta casa de sua família, de favor e sem herança, tendo casado com um rapaz pobre que morreu cedo. E sua filha, minha avó, que ao ficar órfã tivera que morar em casa estranha pra aprender um ofício, lá foi morar tendo se casado e nela nasceu minha mãe e todos os seus irmãos. E nascemos todos, eu e meus irmãos. Minha mãe sempre contava que quando casou só tinha uma cama patente e um roupeiro que lá já se econtrava, mas que estava muito feliz.
E as alpargatas eram aqueles sapatos de pano com sola de sizal. Chicletes Adams e balas Azedinhas, as "porcarias" que meninos e meninas compravam na entrada para a matiné de domingo no cinema. E um dia fiquei boquiaberta ao ver um senhor de cenho carregado que era algum funcionário público diferenciado, coisa que os habitantes olhavam como uma espécie de autoridade, ir ao balcão e pedir balas PIF-PAF com seu vozeirão de gigante peludo, dizendo: "me dê dois cruzeiros..." Como mais tarde achava estranho ver meus professores do ginásio dentro de um ônibus e levando compras como qualquer humano comum. No meu entender, professores vindos da capital na maioria, bem vestidos, eram pessoas que surgiam de locais diferenciados diante da turma, e teriam que sumir como por encanto, seres à parte que não tinham nenhuma característica do mundo que eu conhecia.
Certa vez, fui com meu irmão ao cinema e ele me deu um saquinho das tais balas azedinhas. Ao tentar abrir, rasguei demais o papel celofane e foi aquele ruído descendo pelo piso em declive. Eu era muito pequena e me pus a chorar, mas ele nem ouviu, uma vez que meninos ficavam à esquerda e meninas à direita do corredor. Naquela tarde, houve um corte de energia elétrica e não pudemos ver os dois filmes programados. Mas eu já estava cansada e querendo mesmo voltar pra casa e nem me importei.
Havia um campinho que ficava do outro lado dos trilhos do trem que passavam nos fundos da nossa casa. Lá os meninos inventavam jogos, e foi onde descobri que o amigo de meu irmão era um menino bonito e por quem eu me apaixonei, bem mais tarde, aos onze anos.
Já o sonho de uma prima mais velha era ter um par de galochas e no dia em que ela finalmente ganhou de uma tia um par usado que sempre ia para algum parente mais pobre, ela inaugurou na primeira chuvarada e caminhou por todas as poças pra comprovar que realmente não molhava os pés. Ela foi meu primeiro ídolo, uma vez que era quase dez anos mais velha, portanto uma adulta, e quando brincava comigo de roda, o dia ficava especialmente claro, as cores vistosas, uma sensação de plenitude que perdura ainda, guardada no fundo da memória.
Há momentos em que tenho a nítida sensação de que aquela criança que eu fui está intacta e pode a qualquer momento sair de dentro de mim e correr para o pátio da minha casa. Entretanto, esta criança não mais sobreviveria na atual paisagem, ela ficaria assustada com os muitos gatos que possuo e dos quais sei que ela não gosta. Ela gritaria ao ver um comercial de TV pensando estar diante de uma aparição e não encontraria as tantas árvores para subir e ao ver as outras meninas surgindo com suas roupas unissex ou com sapatos de saltinho, na certa ficaria muito confusa ao olhar pro seu vestido de saia rodada, sapatos boneca com meias soquete, uma fita nos cabelos e olhos arregalados ao ouvir a maiorzinha dizer que o tal ator de novelas transou com a atriz tal no intervalo da gravação e que ela já deu beijo de língua. Uma criança cujo espaço-tempo pertence a outra realidade que já não existe mais e agoniza na memória dos brasileiros chegados aos cinquenta anos.