UM TUDO EM MEIO AO AMOR
As pétalas multicolores da roseira no jarro sobre minha escrivaninha tremulam à brisa e parecem acenar serenamente para mim como se quisessem dizer-me algo. Eu as encaro e fico meio que risonho, um tanto maroto, pois as percebo sorrateiras e astuciosas, mas logo me vejo acabrunhado por esse pensamento salpicado de resquícios poéticos e traços de devaneio a que não me furto porque entranhado em meus poros.
Deito meu olhar por sobre a foto de minha linda esposa sorridente, o rosto colado ao meu cujo sorriso denota especial felicidade, e me pego sonhando como se estivesse num jardim todo florido e perfumado, notando a seguir que as flores são os saudáveis dentes dela e o perfume vem do seu hálito de deliciosa fragrância. O belo jardim não é outro se não seu terno rostinho, onde brilham olhos cor de esmeralda e lábios muito mais doces que os de Iracema cantados por José de Alencar. Tenho por mim que a pobre índia alencarina morreria de inveja se tivesse conhecido minha querida esposa. E José de Alencar teria mudado o nome da personagem de Iracema para Ana se por um desses acasos da vida avistasse minha querida. Deixo meu coração bater mais forte enquanto, encantado e cativo, passeio meus olhares por cada centímetro quadrado de suas faces acetinadas aveludadas.
E lá está a webcam direcionando seu olho único, redondo e patético, para mim como a indagar se pretendo ser bisbilhotado em minha face circunspecta. Expresso, então, um repentino esgar mal-humorado ante a brusquidão de sua audácia, cubro-a imediatamente e me ponho a vislumbrar seu robótico e esférico aspecto grotesco. Vem-me um inesperado anseio de tomá-la na mão e arremessá-la janela afora, cá do quinto andar do prédio onde moro, para vê-la espatifar-se no chão duro do meu condomínio. Todavia, no intuito de evitar a concretização dessa rispidez sem causa, desvio o olhar direcionando-o às caxinhas de som escuras e abobalhadas, agora silenciosas, de pé bem ali ao meu lado como pigmeus empalhados à moda cossaca, seja lá o que isso for. Ambas permanecem à espera de um comando aleatório para desferir no ar o som adormecido em seus âmagos vulneráveis. Melhor não tocar nelas, são barulhentas como recém nascidos chorões.
Há livros muitos espalhados desordenadamente sobre a escrivaninha, praticamente todos expondo capas bem elaboradas, de rico design, próprio dos artistas plásticos habituados à beleza estética e ao visual atraente. Uns são relatos verdadeiros sobre o sofrimento das mulheres árabes em seu mundo dominado por homens fanáticos, outros são de auto-ajuda e mais outros enveredam pela fantasia universal da ficção criativa. Jack Higgins, Khaled Hosseini, Harriet Logan, Jean Sasson olham para mim através de seus nomes em destaque nas obras desalinhadas e ficam em silêncio como a esperar de mim uma atitude qualquer. O mutismo das letras embaralhadas tecendo frases é quase um grito sufocado e assustador. As obras literárias bradam em alto e bom som envoltas em seu mutismo disfarçado. Todos esses livros estatelados em derredor querem ansiosamente ser lidos e, se possível, resenhados, pois afinal de contas foram concretizados com essa específica finalidade. Mas se já os li ou, na verdade, estou a meio caminho de uns tantos? Eles que aguardem, breve os manusearei para meu próprio deleite intelectual. São para isso os livros, ora pois!
Que mais há em cada recanto ao meu redor além do tédio desnorteante? De um tudo, práticamente, eu diria. Folhas de papel rabiscadas por alguma razão, dois celulares esquecidos e calados, o pincenez coberto da poeira que vem pela janela aberta, um calendário 2009 enviado pelo banco onde mantenho minha c/c, canetas destampadas e papéis diversos e desconexos, tantos que se ajeitam pelos recantos de qualquer maneira e vão se acumulando ao longo dos dias e dos anos. Não é bagunça, só minha maneira de ser. Até que a amada esposa, o amor de minha vida, se achega e põe aquela ordem feminina doce e singela tão típica de seu carinhoso jeitinho admirável e amoroso.