A MÃE NA JANELA

Tantas vezes a vi, assim, debruçada sobre a mesa, esticando, alisando com as mãos cuidadosas, alentadas de carinho e cautela, no fazer simples, mas imprescindível do passar o friso, transformar em plano o tecido rugoso, amarfanhado, atirado no cesto de roupas. Tantas vezes, a vi na costura, dobrando as costas no espaldar incômodo da cadeira, puxando sob a agulha, o pano, com a mão diligente, moldando-o de acordo com a linha que se desenhava autoritária, inventando curvas, metamorfoseando o que não tinha forma, transformando em vestuário o que era só projeto.

Tantas vezes a vi, ainda perscrutando entre lentes emprestadas, o grau necessário para puxar o fio, manusear o dedal, criar a imagem em alto relevo, bordando o que era somente um risco imitando flores ou paisagens. Colorindo o que o sol se antecipava em dar-lhe cores e reflexos. Quem sabe os contemplasse, quando prontos e percebesse que sua criação devia muito à natureza, já que os punha sobre a mesa, ao alcance da janela, emoldurada pela luz.

Tantas vezes a vi, ali, sentada na poltrona colorida de pés de palito, paciente e atenciosa, mexendo os dedos ágeis, praticando-os como se dedilhassem ao piano, produzindo contornos com a linha, puxando daqui, enfiando ali, convertendo o que era apenas nós de linhas brancas ou coloridas em guarnições de crochê: verdadeiras malhas de flores, estrelas, arabescos, arranjos, construindo guardanapos, panos de prato, toalhas, centros de mesa.

Tantas vezes a vi cansada, voltando da fábrica, imaginando-se entre panelas e louças, vestindo a casa em ninho acolhedor, projetando caminhos, palmilhando esperanças que só ela via e sentia no coração acautelado.

Muitas vezes a vi sorrindo nas festas familiares, nos natais em família, no sorver o vinho com a alegria de quem comemora e nutre a paixão pelos momentos simples, em que a compreensão se ajusta ao presente, o amor transborda, a convivência enaltece e sensibiliza.

Muitas vezes a vi forte, austera, severa, enérgica, induzindo-nos à força e coragem, que julgava imponderáveis ao enfrentar desafios.

Algumas vezes a vi frágil, doída, sensibilizada. Por vezes, chorava de emoção. Noutras pela perda, pela falta contida, pela amizade fugidia, na despedida.

Muitas vezes, senti seu abraço, seu apoio, sua nobreza, seu carinho e percebi, de soslaio, quieto e feliz, seu orgulho por sermos seus filhos.

Breve para nós, partiu. Mas da mesma forma que nos deixou, perpetuou a lembrança de suas noites na janela a esperar, de sua voz vibrante a sorrir brejeira nas peças que nos pregava, no seu jeito pleno e singular de ensinar pela mágica o mistério da vida, de nos permitir viver assim, no exemplo do trabalho, do cuidado, do carinho, do zelo, da gratidão.

Por certo, estas lembranças nos acompanharão vida à fora, porque estás aqui, tão próxima, que quase te sentimos ao nosso lado, guiando-nos de algum modo que nem percebemos, mas a tua mensagem pousa tranqüila em nossos corações e mentes.

Muitas vezes te vi assim, mãe, porque assim te apresentavas.

Gilson Borges Corrêa
Enviado por Gilson Borges Corrêa em 23/11/2008
Reeditado em 23/11/2008
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