TRABALHO COMO ESCREVENTE DE PEQUENOS PRÍNCIPES
TRABALHO COMO ESCREVENTE DE PEQUENOS PRÍNCIPES
Crônica Vencedora do 1º Concurso Literário do Tribunal Regional do Trabalho da Primeira Região – TRT-Rio – Rio de Janeiro-RJ – julho/2007
Afonso Estebanez Stael
Trabalho como escriturário de rua de pequenos príncipes. Escrevente juramentado da última página de vida das almas que emigram para além de onde os pássaros alcançam. Bastam-me uma pequena mesa e uma cadeira, numa beira de calçada, na esquina de uma avenida ou entre os canteiros de um jardim. Meu salário depende do tamanho da ventura que o tempo lhes reservou. Se tão breve como um leve aceno de adeus ou eterno como o perfume da brisa no crepúsculo...
Ele era nosso velho juiz de paz. Nada tão breve nem mais eterno quanto um velho juiz de paz. Quando ele me pediu que redigisse aquela carta, sentei-me à sua frente e logo percebi que suas memórias se abriam como páginas de um livro de esperança, como o espírito de Marcos abriu-se em pergaminho para o novo testamento. Que meu trabalho, então, não precisava de mais nada merecer além do sopro criador de um acendrado agradecimento, rendido a título de remição de última vontade.
Pequenos príncipes nunca pretendem de mim, mero escrevente do evangelho secreto das almas, desempenho que devesse ir muito mais além de onde os pássaros alcançam. Como nosso velho juiz de paz, eles esperam registro das coisas simples da vida como um caso de amor vivido para sempre. Era assim entre os antigos colonos da fazenda de meu avô. Lembrar-me destas coisas é mais do que reler as páginas desarquivadas de uma velha cartilha de alfabetização à luz da lamparina à querosene. Como acender com um tição o cigarro de palha no final de uma história debulhada à beira do fogão de lenha. Ou emprestar a montaria à noite para um mensageiro levar a notícia da passagem de um parente distante que morreu em pleno estágio terminal de uma saudade. E sempre havia nisso uma sensação de recompensa como a do velho jardineiro que não necessita de que as rosas lhe agradeçam.
Ele apenas queria que eu redigisse aquela carta. Era muito pouco para quem testemunhou as aventuras e desventuras da desvairada geração de 30. Para quem aquele tempo não deu muita chance de sacar seu lenço branco no último duelo ao pôr-do-sol do estado novo. Para quem ajudou a tomar a si a honra do martírio pessoal da emancipação daquele pequeno município, atordoado ainda pelo doping-crack da burguesia cafeeira. Para quem, no celibato das honrarias pessoais, rendeu-se ao ímpeto de abrir os braços no alto da montanha e esbravejar ao vento da integração política para que soprasse a favor de nossas esperanças. No tempo em que fazer política por aquelas bandas era como engrossar fileiras de alguma cruzada santa para receber a bênção papal na clandestinidade.
Deixei-me ficar ali parado, perplexo, ouvindo e registrando atentamente o segredo daquela receita de extremado afeto caboclo-português. Era tão pouco o que eu podia fazer ao pé daquela gigantesca sequóia de sabedoria emigrada por instinto de além-mar até nosso desconhecido santuário de palmeiras onde canta o sabiá. Ele queria apenas que eu redigisse aquela carta, para agradecer a tantos quantos a ele mais deviam. A ele, que até aquele certo dia de certo mês de algum certo ano passado, ainda ignorava que a ponte de safena que lhe introduziram no peito foi para conter a torrente de solidariedade que lhe transbordava o coração, aonde vinham matar a sede os iniciados do apego às grandes causas do amor ao próximo, os colegiais da educação política de resultados coletivos e os neófitos da consagração pessoal através do aplauso popular discreto e silencioso. Ele, que por isso mesmo foi recuperado, porque nasceu com a alma vestida de cabelos brancos, para trazer para nossas vidas o destino dos grandes sacerdotes.
Desde as épocas jamais remotas aquele pequeno príncipe foi o melhor guardião de vinte e quatro horas por dia que a cidadela da liberdade já aplaudiu. Sua única obra múltipla nasceu perpétua como um testemunho bizantino para a História. No alto das colinas de nossas esperanças, ergueu aquela cruz de braços abertos para os quatro horizontes de nosso verde vale. Para iluminar mais longe do que os faróis de todos os depois de amanhãs...
Talvez seja por isso que aquela espécie de seringueira florescida no marco inicial de nosso itinerário simbolize um estágio primário da vida além da morte. Bem mais além de onde os pássaros alcançam. Onde o sangue alviverde das amazônicas não se ressente do holocausto apocalíptico. Onde as flores selvagens submetidas na mortalha do inferno prematuro cumprem seu destino inexorável de renascer entre os espaços dos paralelepípedos.
Foi assim que pude ver o meu pequeno príncipe pela última vez. Caminhando como um flamboyant multiplicado ao longo daquela rua. Cabelos brancos, distribuindo cumprimentos e versículos proféticos de vida eterna ou jogando amarelinha de afeto público no seu mais íntimo parque infantil. Ele e sua bengala curvada ao peso daqueles bem vividos oitenta e oito anos.
Mas ele só queria que eu redigisse aquela carta. Que acabei não redigindo. Não tive como desincumbir-me daquele encantamento. Acho que não deu tempo de me contar tudo sobre todos os dias de solidariedade que nos dedicou e que Deus, para marcar as suas obras, fez de prata cada fio de cabelo com que ele distribuiu a todos nós a sua paz.
Um de nós desistiu. Tenho que fui eu. Não estive mais com ele. Nem ele a mim me procurou. Penso que simplesmente aconteceu. E é esta agora a única maneira que me acudiu de levar a termo a redação daquela carta, numa escritura que não podia pertencer apenas a alguns. Mas a todos nós...
Afinal, somos todos responsáveis por aquilo que cativamos. Exupéry diria que o personagem que me gratificou com o salário desta crônica era um desses pequenos príncipes que regressou ao seu planeta de origem. Levado pela revoada dos pássaros selvagens. No dia em que isso aconteceu, soubemos que nosso pequeno príncipe aproveitou para evadir-se, pássaro selvagem que emigrou....