Memória de acadêmico

Todo santo dia Dona Aniete vem limpando a casa cada vez mais cedo. Mal aurorece e começam os ruídos da casa. Resmunga e limpa tudo falando sozinha, desembrulhando pacotes de outro mundo: “A palavra khrónos é do grego, Agamenon é nome próprio, vem do grego e eu nada sei de grego! Nunca aprendi grego. Para mim tudo é grego”.

Por Zeus a casa de pensão estava sempre limpa com aquele ser mágico zanzando pela cozinha. Certa vez foi para a torradeira enquanto a máquina de cortar grama corria para cima e para baixo pela grama do jardim numa tarde de calor em julho.

- Dona Aniete! A senhora está, mas não se conjuga!

Alma da casa feita de barulhos, bonita e gentil; para enfrentar o dia com a melhor dignidade da moradia.

- Desejos de muitos uma casa. Sim, desejo de muitos. Dona Aniete precipitava-se num tique de qualquer coisa casual. A expressão ficava vazia nesses dias.

Raimundo gazeava aulas. Dava adeus aos cálculos da arquitetura. Melhorava ainda mais quando telefonava o Sabino. (Sempre haverá um amigo Sabino, cronista). Contava-lhe tudo:

- Agora vem com essa de que o vazio é a mãe da filosofia.

- São palavras de Tolstoi ou está praticando uísque?

- Procure assistir ao novo filme ou ainda: vá à praia! Era tudo. Ter ama seca alada era algo difícil de convencer por sobre a graça obtida do ideal conforto. Como se ensinasse ao seu melhor momento do mundo a querer mais. Tudo via. Tudo queria. Tudo sabia. Havia por outro lado o tédio. O tédio cola. É preciso tomar cuidado.

O dom do tédio é passar de novo na mesma hora, algo vazio. Novamente o bife mal conservado do lamento como um clichê no olho pronto. Ao invés de apostilas carregaria o volume de bolso de Rimbaud. O bom sempre batendo a porta. Num gesto largo Aniete gritava enquanto desaparecia:

- Volte menos ignorante da faculdade! Rindo o riso próximo de quem encasqueta com alguma coisinha lá no meio do fundo.

Nunca fora seu filho. Ficava endiabrado com o tom de mãe que ela exercia. Depois a faculdade era algo mais do que simples escola e seus dias de acadêmico estavam contados. Ela aurorecia alada, acordando-o antes do galo de São Pedro. Aquilo era crime mesmo que fosse para as provas finais do ano. Por vezes baldeava a manhã sonolenta até o meio-dia chutando latas no campo do Sarapico. Ao retornar penetrava no coração da cidade. Era pelo menos um hóspede tranqüilo da cidade feliz. Havia moça bonita e alegria entre olhares cheios de promessas sutis, que brilhavam como jóias naturais rebrilhantes, no simples modo de se vestir o dia.

Súbito um tumulto! A luta do camelô contra o fisco. Mal dava tempo de respirar. A polícia reprimindo com gás pimenta. Dona Aniete estava no centro do caminho. Eles empunhavam cartazes dizendo: somos trabalhadores! E a polícia carregava faixas com os dizeres: ordem: acabar com o trabalho momentâneo! Decidido: naquele momento apenas um lado teria que fatalmente desistir da posição. O noticiário presente naquele Deus-nos-acuda mostrava os pedaços de Dona Aniete voando como perfume. O perfume de ter vivido uma existência de fiel ternura.