Elogio aos sete pecados capitais: a gula
Se, de modo simplista, classificarmos os sentimentos humanos em duas categorias polarizadas em que a dor represente o lado negativo e o prazer o positivo, a gula pode ser considerada algo bom. Duvido que alguém discorde de que comer seja um prazer. Como uma prática tão prazerosa pode ser pecado? Capital ainda.
Se este não foi argumento suficiente, aqui vai outro: se entendermos que o destino de todo ser humano é tentar ser feliz, o alto índice de serotonina encontrado no guloso logo após ingestão de guloseimas comprova seu esforço em cumprir sua missão aqui na Terra. Que louvável!
Por isso, estou convicta que não há problema nenhum com a gula, e sim com os desmancha-prazeres mal-resolvidos que reprimem no comilão esse delicioso ritual de saciação. A inconformidade do castrador de apetite alheio é tão grande que o impele a incutir no guloso o sentimento de culpa, tentando convencê-lo de que comida prazerosa faz mal à saúde. Isso é nada menos que inveja. Mais um pecado capital. Mas esse será tema de outro texto.
O mais engraçado é que se o bom-de-garfo se empanturrar de verdura, legumes, frutas e fibras não é tachado de olho-grande (o popular "zoião"), e sim considerado saudável e natureba. Já se o sensível à comida comer muito de chocolate, sorvete, batata frita e massas o repressor lhe passa uma descompostura... E lhe pede para moderar a gula. Puro preconceito. Gula é o ato de comer em excesso, não importa o tipo de alimento ingerido. Mesmo assim, e ainda movido por nefasto incômodo, o frustrado sente tanto afã em conter a comilança dos outros que tem o bom-senso prejudicado. Não percebe que nada em excesso é saudável; nem a recomendada comida natural, que pode causar desequilíbrio ao organismo quando consumida com exagero. Mas se o assunto for comida prazerosa o pecado da gula sempre é mencionado.
Considerando outra possibilidade, talvez a condenação do apego excessivo às boas iguarias não seja apenas pela comida em excesso em si, mas pela visível satisfação que o glutão sente ao ingeri-la. Por mais que tenha gosto pela coisa, é difícil alguém sentir prazer comendo nabo ou rabanete; em contrapartida, é muito natural salivarmos só em pensar em sorvete crocante com cobertura de chocolate, farofinha de castanha e amendoim e, só para dar um toque especial, biscoito enterrado na cobertura. Impossível não desejar uma materialização de prazer certeiro como essa. Taí, eis outro motivo de repressão: desejo e prazer são termos com conotação sexual; dão idéias e suscitam a imaginação. E como contra a imaginação ninguém nada pode, ao classificar a gula como pecado capital, o que os religiosos tentaram fazer foi proibir o afloramento dela para que não incite nos outros o surgimento de um outro pecado. Que controle descabido!
Diante disso tudo, concluo que os cristãos foram estratégicos. Explico. Já que comer coisa boa é tão bom que alude a outros pecados como a inveja e a luxúria, os religiosos resolveram condenar a comilança para impedir a proliferação dos atormentados e desviados e assim diminuir o fardo religioso de doutrinar tantos pecadores.
Não adiantou muito. Depois da condenação inventaram o sorvete.