Louça suja e poesia

Não faz muito tempo, alguém me disse que achava que essa minha compulsão pela escrita é uma forma de fuga. Naquele instante, neguei veementemente. Contudo, hoje, confesso que cheguei a parar para pensar sobre tal possibilidade.

Já faz alguns dias – seriam semanas? – que não venho enfrentando a árdua tarefa de lavar a louça. Esse negócio de morar sozinho, ser independente, auto-suficiente e coisa e tal já fez bem mais minha cabeça. O que é certo é que, num determinado momento, fiquei de mal da pia – e, por conseqüência, da cozinha como um todo. Ocorre que, hoje, por contingências impublicáveis, necessitei de um prato e, assim, tive de ir até a cozinha para tentar resgatar algum.

Fiquei por segundos olhando a porta bem fechada à minha frente. Ali, busquei lembrar onde, afinal, poderia localizar um prato, já que a última memória que tenho do amontoado de louças sobre a pia não me indicava nenhuma referência que pudesse facilitar minha intrépida busca. Segurei a maçaneta resoluto a entrar. Entretanto, no último instante vacilei. E se, por acaso, aquela crosta gordurosa – a esta altura já meio embolorada, suponho – tivesse sofrido alguma mutação genética e eu encontrasse, do outro lado da porta, pratos, copos e panelas unidos num corpo disforme de um monstro horrendo, empunhando garfos e facas, na espreita de me atacar?

Bateu-me uma angústia! E não só por minha indisfarçável covardia, mas porque, de fato, a necessidade do prato era premente. Diante de tal sentimento aflitivo, meus instintos estimularam uma enxurrada de adrenalina no meu metabolismo e, como sói acontecer com heróicas figuras como eu, resolvi enfrentar a situação como se deve: fiz meia volta e fui à frente do computador para compor um poema sobre aquele sentimento atroz que me assolava.

A tela em branco e o cursor a piscar me convocavam a desvirginar aquela folha de papel virtual. E nada de poesia! Levantei-me, fui até a sacada assistir o corre-corre nas calçadas, no afã de captar alguma inspiração nas idiossincrasias humanas. Mesmo assim, não deu em nada. Vasculhei notícias na internet, revirei os livros nas estantes, desengavetei velhas anotações e, a despeito disso tudo, não surgiu sequer uma reles idéia, tosca que fosse, para consubstanciar o diacho do poema angustiado.

Tudo já parecia perdido e, enfim, eu estava me preparando para retornar ao desafio da porta da cozinha, onde uma esfinge imaginária, edificada com a louça suja, estaria a me incitar: “lava-me ou te devoro!”. Entretanto, uma última tentativa ainda me restava, antes de entregar-me vencido. Já que não havia poesia, nada impedia que eu escrevesse uma outra coisa. Uma crônica, por exemplo. Aliás, é justamente esta que, por absoluta falta de maior imaginação deste escriba, aqui chega a seu fim.

               Estou indo lavar a louça. Se não houver notícias minhas nos próximos dias, por favor, chamem o corpo de bombeiros e avisem a defesa civil. Provavelmente, aquele monstro mutante, indiferente aos disparos de detergente e o corpo-a-corpo com a esponja de aço, logrou me aniquilar a golpes de garfos e facas e, a esta altura, deve estar solto pelas ruas pondo em risco a segurança da população em geral.