Somos todos iguais, braços dados ou não.
Embora com um atraso de pouco mais de dois anos, hoje resolvi contar para vocês como e por que cheguei ao Recanto das Letras.
Desde menino, o ato de escrever sempre me foi mais leve e prazeroso do que o de falar. Ao crescer, cheguei à conclusão de que havia palavras demais em efervescência dentro de mim. Palavras que nasceram, cresceram e se inventaram comigo, palavras que eu captava do silêncio e do grito do mundo, palavras, enfim, que não poderiam ficar caladas. Não poderiam e já que eu era introvertido e pouco comunicativo, descobri que o papel e a caneta poderiam ser os meus maiores veículos de contato com o mundo. Assim, quase sem querer, quase como uma necessidade de me relacionar com a realidade que me cercava, fui escrevendo, escrevendo, e, um dia, alguém leu os papéis e me disse que eu era um escritor. Nada contra, isso era melhor que ser um sisudo ambulante...
Mais tarde, descobri que podia escrever minhas emoções, meus sentimentos, minhas paixões, meus amores, meus desenganos, meu céu e o meu inferno, em linhas partidas que, como vocês sabem, se chamam versos. Alguém leu e me chamou de poeta. Ora, vejam só, vocês já viram maior surpresa do que essa, que tive: eu, nordestino, da terra de Artur Azevedo, Aluízio de Azevedo, Graça Aranha, Sousândrade, Raimundo Correia, Coelho Neto, Humberto de Campos, Gonçalves Dias, Ferreira Gullar e tantos outros gênios literários vivos ou mortos, ser considerado escritor e poeta?
E pois, se assim era, e desde que esses gênios literários, mortos, não se remexessem em seus túmulos, em furioso protesto, e os vivos não me execrassem publicamente, e considerando ainda que foram as outras pessoas (amigos ou inimigos) que me declararam poeta e escritor, concluí que nenhum crime cometia em me assumindo como tal para gregos e troianos.
Picado, portanto, pela mosca azul da veleidade literária, lá vim eu, em agosto de 2006, disputar um lugarzinho ao sol entre as "cobras criadas" do Recanto das Letras.
E continuo até hoje com vocês, pois "Somos todos iguais, braços dados ou não", como cantou o Geraldo Vandré, na bela e emocionada canção "Pra não dizer que não falei de flores", que se tornou o hino-símbolo do protesto da juventude e de todos os descontentes da ditadura militar que dominou o Brasil de 1964 a 1989. Considerada como uma incitação à resistência contra a ditadura militar, ela foi censurada e proibida de ser reproduzida em rádios, executada nos meios artísticos ou cantada em público. Mas nós a cantávamos, entre balas, cacetadas e arremetidas de cavalos. Pois sabíamos que a canção era poesia e a poesia nunca morre. Nem teme os canhões da vida.
E para quem tem menos de 30 anos e nunca a leu ou ouviu, ou nunca a cantou, nem mesmo no seu coração, eu a transcrevo, abaixo, com a alma cheia de saudades do tempo em que os jovens do Brasil possuíam os corações verde-amarelos:
"Caminhando e cantando e seguindo a canção,
Somos todos iguais, braços dados ou não
Nas escolas, nas ruas, campos, construções
Caminhando e cantando e seguindo a canção
Vem, vamos embora, que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora, não espera acontecer
Pelos campos há fome em grandes plantações
Pelas ruas marchando indecisos cordões
Ainda fazem da flor seu mais forte refrão
E acreditam nas flores vencendo o canhão
Vem, vamos embora, que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora, não espera acontecer
Há soldados armados, amados ou não
Quase todos perdidos, de armas na mão
Nos quartéis lhes ensinam uma antiga lição:
De morrer pela pátria e viver sem razão
Vem, vamos embora, que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora, não espera acontecer
Nas escolas, nas ruas, campos, construções
Somos todos soldados, armados ou não
Caminhando e cantando e seguindo a canção
Somos todos iguais, braços dados ou não
Vem, vamos embora, que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora, não espera acontecer
Os amores na mente, as flores no chão
A certeza na frente, a história na mão
Caminhando e cantando e seguindo a canção
Aprendendo e ensinando uma nova lição"
("Pra não dizer que não falei em flores", Geraldo Vandré, 1968)