Detesto Funeral - II

Sabem por que?

Vejamos:

Morrer, no dicionário Aurélio é definido por um amontoado de palavras, como: “deixar de viver, finar-se, falecer, etc.”, sem contar uma boa quantidade de sinônimos: “bater as botas, bater a caçoleta, apitar, dar a alma a Deus, entregar a alma ao diabo” e vai por aí afora.

Já no meu entender, morrer significa: abandonar as boas coisas da vida, livrar-se das dívidas e dos problemas angustiantes, livrar-se das perseguições dos credores, da mulher, da sogra, apagar-se, despedir-se dos bens conquistados com unhas e dentes e deixar tudo nas mãos de... Sabe lá Deus com quem.

Mas, às vezes ponho-me a pensar: morrer não é tão ruim assim, tem as suas compensações, pelo menos no dia em que “bater a caçoleta”. Por exemplo: nesse dia recebe-se todo afeto e carinho não só dos parentes, como também dos amigos e curiosos que comparecem no velório. Frases como estas são comuns: “ele está tão bonito”, “parece que está dormindo...” “Deus o levou porque precisa dele no céu...” “Era tão bom...” E assim por diante. Se o falecido era bandido, misteriosamente, transforma-se em “mocinho”. Ninguém ousa levantar o dedo contra aquele que “bateu as botas”.

A vantagem pra quem “se apagou” é ouvir calado tantos elogios sem precisar expressar sua gratidão.

Alguns mais “vivos” comparecem ao velório apenas por obrigação. Sabe como é: fazer média com os parentes, novas amizades e até para discutir um conveniente negócio. Em compensação são forçados a agüentar até o momento de levar o defunto para a cidade dos pés juntos, embora isso seja para eles verdadeiro martírio. Na sala aglomeram-se pequenos grupos para cochicharem em segredo. Deus sabe lá o que estarão comentando.

E tem aquelas “espanta moscas”, sempre com lenços na mão e que não desgrudam da cabeceira do defunto, “nem a pau”. A cabeceira é um lugar disputadíssimo pelos parentes, especialmente pelas mulheres. Quem está sentado ali não arreda o pé, nem para fazer suas necessidades fisiológicas; se sair dali, quando voltar o lugar já se encontra ocupado. Daí, reclamar não pega bem, não é o momento oportuno, e o jeito é aguardar morrendo de raiva, que a nova ocupante vá também ao banheiro. Ora, ainda mais mulher, que a todo o momento tem que fazer xixi. Aí, ela retoma o lugar e só o deixará na hora do enterro, mesmo que tenha que fazer xixi na calcinha.

O tempo não passa. Muitos já estão cansados e não vêem a hora de dar o fora, inventando uma desculpa qualquer, ou saírem sem que ninguém veja; outros permanecem mesmo contra sua vontade, forçando um semblante fúnebre. E tem aqueles mais sabidos que chegam bem na hora do enterro. Vão até onde está o “esticadão”, fazem “o nome do padre” e fingem rezar uma prece.

Para disfarçar a inquietude da longa espera, todos passam a circular pelo salão. Isso também é uma velha tática para mostrar a cara, faz parte do esquema para evitar o falatório maldoso: “não vi fulano...” “Cicrano não apareceu...” “Também não vi beltrano”. De repente acontece uma inesperada metamorfose na cara dos presentes e até se pode notar nos seus semblantes uma alegria camuflada e contagiante.

Um vozeirão de gente chega aos ouvidos. Certamente é pelo contentamento de saber que a agonia vai chegando ao final. Chegou a hora de fechar o caixão e levar o defunto. Ufa! Até que enfim! Com satisfação todos já começam a rezar juntos, mas com algum desafino entre os rezadores talvez pelo cansaço da longa espera. Pronto! Lá se vai o “apagado”. Agora, todos querem ajudar a carregá-lo. Quanto mais rápido melhor, mas o pior é quando o apagadão é daqueles beberrões inveterados; só a pança deve pesar mais de 80 a 100 kilos, imaginem o total do seu peso... Aí também há uma boa disputa, pois carregando o caixão sempre aparecem melhor. E tem aqueles que só acompanham o enterro sem fazer força; de vez em quando ameaçam disfarçadamente, algum sorriso de alívio. Claro que já cumpriram suas obrigações.

Ao descer o caixão na cova os presentes batem palmas. Terminou o ato final. Batem palmas pelo contentamento em ficar livre do compromisso fúnebre. Só falta o ator principal levantar do caixão e fazer os agradecimentos de praxe. Mas uma dúvida paira no ar: as palmas seriam pelo desempenho do defunto ator, ou pelo contentamento de se verem livres dele? Sei não... Daí passam a jogar torrões de terra sobre o caixão que já está lá no fundo; seria por acaso para ajudar o aterro mais rápido? Também sei não... A viúva com óculos escuros, enquanto agacha para jogar uma pétala de rosa sobre o caixão entorta os olhos para algum futuro pretendente que já deve estar a seu lado.

Mal terminada a cerimônia fúnebre, a maior parte dos presentes se manda. Grupos de parentes aqui e ali cochicham possivelmente, tentando chegar a um acordo na divisão dos bens deixados pelo finado. Parentes mais próximos forçam uma ou duas choradas e, pronto! Acabou-se. As mulheres quase todas usam óculos escuros, mas por detrás deles não se vê nem uma “santa lágrima”. Ah! Sem óculos escuros, todos vão perceber que não choram pelo finado. Agora, até parece que todo aquele infernal pesadelo se dissipou como por encanto.

“Ufa! Que alívio”. Provavelmente, é o que todos devem estar falando para si próprios. Claro! Eles não são bobos para demonstrar o alívio diante da platéia presente... Ora, tais sentimentos não podem ser expressos no meio de tanta gente, o que os outros vão falar?

No dia seguinte cada parente retoma suas atividades normais. Aqueles que vieram de outras cidades, aproveitam para descansar uns dias e rever os amigos, ou então filar o almoço ou jantar na casa de algum parente, ou tomar “umas e outras”, pois, além de economizar é a oportunidade para pôr as fofocas em dia.

Do falecido, quase já nem se fala mais. Os poucos comentários são feitos com certa frieza. Só um ou outro parente relembra fatos ocorridos com o “enterrado” quando era vivo, ou faz elogiosas referências a seu respeito.

Já no outro dia, após terem despachado o defunto, só reina alegria entre os parentes, que até se reúnem para tomar umas “caipirinhas” em memória do falecido, ou recordar algum fato degradante ocorrido com o falecido. Claro! Ele não era tão bom assim... Lembra disso... Daquilo...

Ele já era. Está bem guardado a sete palmos de terra.

Mas, se um dia ele levantar dali...Que Deus o tenha!

Luiz Pádua
Enviado por Luiz Pádua em 17/11/2008
Reeditado em 17/11/2008
Código do texto: T1288185