HOJE É DOMINGO

“Mas já que se há de escrever,

Que ao menos não se esmaguem

Com palavras as entrelinhas”. (

Clarice Lispector)

Hoje é domingo, que pede cachimbo, o cachimbo é de ouro, bateu no besouro, o besouro é valente, bateu no tenente, o tenente é fraco porque ganha pouco e por conseqüência come um tantinho assim.

Pelo visto o meu domingo não passará de um belo dia cujo divertimento maior será o de encangar grilos, já que por esta minha rua não passa sequer um trio elétrico para que eu possa correr atrás.

Nada interessante à vista e a cabeça carecendo ser desanuviada... O certo é que estou desanimada, só não voy a me matar, mas vou lamentar, lamentar porque não nasci em 1303, porque não vou à missa, porque não me chamo Laura e porque não conheci Petrarca, e ai eu estou me referindo ao poeta italiano Francesco Petrarca (1304/1374), que viveu pelo amor e para o amor dedicado a uma única mulher: Laura Novaes, que nunca deu trela para as “cantadas” do apaixonado poeta, pois era uma senhora honesta e bem casada. E que morreu aos vinte anos numa epidemia de peste. Mesmo assim, Petrarca amou-a por mais vinte anos que lhe sobreviveu.

Petrarca dedicou um rosário de poesias à sua amada. Não há registro de que ela as tenha lido, nem tampouco se com isto se importou, haja vista ter o poeta imaginado que, ao ficar velha, Laura pudesse sem receio escutá-lo e lhe fez a poesia, que se segue mas por ser tão rebuscada, prefiro a interpretação da mesma, feita por Jamil Haddad na sua tradução do “Canzoniere” de Petrarca:

“Senhora, se não obstante tanto tormento e tanta angústia, eu puder chegar a idade em que os teus olhos estarão apagados em virtude da velhice, idade em que os teus cabelos de ouro estarão mudados em prata, quando então tiveres deixado de usar os trajes das jovens e quando estiver empalidecida a face que agora mal me dá coragem de lamentar-me, possa chegada esta hora, o amor dar-me energia para dizer-te quais foram os anos, os dias e as horas de meu martírio. E se então a nossa idade provecta for contrária a realização dos doces desejos, permita ao menos que eu obtenha de ti um suspiro de compaixão.”

E já que iniciei este texto com Clarice, com ela encerro: “ Hora do marinheiro partir. – Você compreende, não é, que eu não posso gostar de você a vida inteira”.

Zélia Maria Freire
Enviado por Zélia Maria Freire em 16/11/2008
Reeditado em 16/11/2008
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