KAVAFIS
NEM TODO DIA É DIA DE KAVAFIS
Nelson Marzullo Tangerini
Inspirado por Constantinos Kavafis, poeta grego, meu companheiro de pena, resolvi distribuir poemas meus ou enviá-los pelo correio a amigos e desconhecidos. Se conhecia alguém na pressa das ruas e dos ônibus e essa pessoa gostava de poesia, ofertava o meu poema. E se não tinha nenhuma obra à mão, pegava nome e endereço e postava, posteriormente, as minhas missivas poéticas.
Gastei “uma nota preta” remetendo poemas para todos os endereços inimagináveis.
Até atirei garrafas poéticas nos mares do litoral fluminense, contendo a poesia Child [Criança], sobre os jovens solados do Irã que morriam na guerra contra o Iraque, na esperança de ganharem o mundo.
Naquela época, década de 1980, não havia internet e eu não podia distribuir textos meus por e-mail.
Era uma forma de divulgar meu trabalho por todo o planeta. E todos os poetas querem ser famosos, querem ser lidos, querem saber que alguém, em outro planeta, anda a ler os seus escritos. Todo artista, no fundo, é um vaidoso.
Foi desta forma que o admirável Kavafis ficou famoso, pensei. Se não publicar um livro em vida, meus amigos e todos aqueles que me conheceram haverão de o publicar, depois de morto. A minha obra dispersa, assim como a do sensível Kavafis, que viveu em Alexandria, no Egito, não haverá de cair no buraco negro do esquecimento.
Uma amiga já havia me avisado que o namorado não gostava da brincadeira; outra, pedia que lhe enviasse mais, porque o namorado era meu fã número um. Uma outra me apresentou seu namorado, também poeta e desejoso de publicar um livro. Ficamos muito amigos, desde então.
Mas foi com a Mônica que o bicho pegou.
Sabendo seu endereço, enviei-lha, de minha autoria, duas letras de música (a balada TREM, de parceria com meu amigo e irmão Osvaldo Martins, falecido prematuramente em 1993, aos 38 anos, e a bossa nova NÃO AMORES, de parceria com o professor e amigo de faculdade de Letras Reinaldo da Silva Palmeira), com boas intenções e boa dose de ingenuidade. A divulgação de meu trabalho e de meu nome estavam acima de tudo. Pus até meu telefone para que acusassem recebimento e críticas. Vejam quanta infantilidade!
Numa bela noite, quando brincava com meus sobrinhos Marcelo e Márcio, no chão do quarto, recebo telefonema de Mônica:
- “Alô, é Nelson?”
- “Sim, é ele mesmo.”
- “Aqui é Mônica.”
- “Olá, Mônica!”
- “Por que você me enviou esta baixaria?”
- “Que baixaria?”, respondi rapidamente. Afinal de contas, não havia postado nenhum poema erótico ou pornográfico.
Eram tantas as cartas, que não me lembrava mais quem era Mônica – há tantas Mônicas no mundo!
- “Trem e Não Amores”.
Percebi que Mônica havia gostado das letras, que ela estava amedrontada e fazendo cena na frente do noivo troglodita. Era muito fácil perceber isto. Podia ler a sua voz.
Nesta hora, o telefone passa para a mão do cavalão, que passa a me insultar com os piores palavrões:
- “Escuta aqui, seu FDP. Posso até terminar com a minha noiva, mas eu vou dar um tiro nos teus cornos!”
- “Posso explicar?”, perguntei. Porque eu queria lhe dizer que tinha namorada e não estava nem um pouco interessado em Mônica. Ela nem fazia o meu tipo.
- “Você não vai falar nada, não vai explicar nada, seu babacão, FDP. Você vai me escutar, seu viado. Eu vou descobrir o teu endereço e vou te dar um tiro na boca, seu babaca”.
Voltei à brincadeira com os meninos, mas não era mais o mesmo. As crianças perceberam a mudança de temperamento e me perguntaram o que havia acontecido. Disse-lhes que nada.
Durante uma semana, o poeta ou sua mãe ouviram trotes, insultos e palavrões do mais baixo calão, pelo telefone. Coisas que o poeta e sua família não estavam acostumados. Enquanto isto, perguntava o artista da pena a si mesmo: “ - O que Mônica viu naquele quadrúpede?”
A mãe do missivista, vendo a tristeza e a ferida que se abriram no coração do filho, um tranquilo libertário e pacifista incorrigível, disse-lhe baixinho:
- “Meu filho, você precisa deixar de ser ingênuo, de se misturar com gente baixa, violenta, ignorante e inculta. Nem todos gostam de poesia. Nem todos conhecem Kavafis.” [*]
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[*] Texto escrito na década de 1980 e reescrito em 2008.
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Nelson Marzullo Tangerini, 53 anos, é escritor, jornalista, poeta, compositor, fotógrafo e professor de Língua Portuguesa e Literatura. É membro do Clube dos Escritores [ clube.escritores@uol.com.br ], onde ocupa a Cadeira 073 – Nestor Tangerini.
nmtangerini@gmail.com, nmtangerini@yahoo.com.br