Crônica de esquina ( Uma lembrança )
UMA LEMBRANÇA
Ainda peguei o tempo em que se começava a trabalhar cedo e, rapazinho arranjei – com pistolão – meu primeiro emprego como Office Boy da Otis Elevadores, uma multinacional que ficava próxima à Pinto Azevedo, um bucólico lugarejo do Mangue, hoje, extinta. Eu passava meio assustado por aquelas ruelas, pastinha debaixo do braço e ia sentindo o cheiro que o sexo real deveria ter, misturando-se às minhas imaginações não menos férteis.
Eu morava em Marechal Hermes e, chegar à cidade antes das oito exigia o mesmo horário do leiteiro que deixava o litro de CCPL na murada da varanda. Então, montado no velho 378, depois de pequenas rusgas por conta de lugares marcados por outros, pagava meia até Parada de Lucas – estratégia do velho pai, sempre esticando o inelástico salário -, pegando a fichinha vermelha. “Deposite no caixa”, lia-se. Como até ao Centro a ficha era preta e, por extensão, mais cara, trazia eu mesmo a minha de casa, guardada no bolso em caso de alguma eventual surpresa da fiscalização. Na hora de descer, distraído, deixava – ou ao menos tentava, pois o olhar austero dos motoristas era vigilante - , deixava o velho ônibus com ambas no bolso. Nos finais de semana, elas eram esmerilhadas na calçada e, coladas e buriladas, viravam os craques do time predileto para os jogos de botões com o resto da turma.
No trabalho eu assumia – ou pensava assumir – um ar mais grave e sério, pesos da responsabilidade. Cada tarefa a mim destinada era uma espécie de missão impossível ao itimorato Boy. E era mesmo, pois sempre recluso no subúrbio, o centro da Cidade era, para mim, um ilustre desconhecido e achar um endereço para pegar ou entregar uma correspondência não era tarefa das mais fáceis.
Almoçava no trabalho. Ao toque da sirene, os departamentos debulhavam seus funcionários para que, no imenso refeitório, cada um pudesse aplacar seu quinhão de fome de diferentes cores e aspectos. Lembro-me do Paraibinha, colega do almoxarifado que, bandeja em punho, acrescentava ao almoço dois pãezinhos. Num, espalhava a goiabada da sobremesa abdicada por alguém. De volta à gaiola, embrulhava-o e o acomodava no fundo da mochila surrada. Aquilo me dava um quê de tristeza, pois presumia que alguma outra fome deveria aguardar ansiosa e com a boca cheia d’água. Uma fome certa de que naquele deserto haveria um oásis de onde o maná viria. De trem, mas viria.
Algumas vezes arrisquei o caminho a pé até a Central para pegar o 23. Àquela hora, a visão das plataformas era a de um rio Ganges. Vencida a roleta, era a vez do pastel de queijo com caldo de cana. Mas aí, embalados pelos solavancos dos vagões e embriagados pelo ranço de tantos suores, ameaçavam lançar-se para desespero das miríades de pés que acarpetavam o assoalho da composição.
Chegando à velha estação, a escadaria vencida de dois em dois lances, dava aos pés a pressa daqueles que têm uma grande urgência. Encontrava mamãe às voltas com a janta, recompensa sagrada para ela. Eu entrava e saía como uma flecha. Voltava tarde e a encontrava dormindo defronte à televisão. O prato já estava arrumado na boca do fogão, mas eu quase sempre ia dormir sem atentar para esse detalhe e sequer o tocava. Era um ingrato, eu que não tinha minha fome aviltada. Hoje, ao lembrar-me disso, meus olhos se eclipsam. Sinceramente, perdão, Paraibinha. Trinta e tantos anos depois, mas desculpe-me.
Aldo Guerra
Vila Isabel, RJ.