Vida Alheia

A mancha branca da raiz dos cabelos mal pintados de preto, antes longos e sem corte, agora mais modernos pela mudança de religião, não deixa enganar que a idade já está passando de meia. As camadas de roupas simples e de cores desconexas abrigam do frio o corpo de estatura mediana. Mostram que a labuta como zeladora do edifício San Remo - quase vazio, de cidade praiana - não lhe rende rios de dinheiro. Sua morada é um pequeno quadrado de concreto nos fundos da garagem. Uma porta e uma janela. Todo dia ela cumpre o seu ofício. Acorda, varre, volta pra casa, varre, dá comida para o gato, volta pra casa, varre mais um pouquinho, vai à padaria, volta pra casa, dá uma última varrida e dorme ao subir da lua. Sua felicidade é o enorme Flamboyant que derruba suas folhinhas amarelas sobre a calçada. Assim, o “varre” seguramente fará parte de sua rotina.

O marido é caminhoneiro. Homem baixo, gordo, meio careca, que após converter-se à nova religião, vez ou outra aparece embriagado sobre uma bicicleta, cambaleando pela rua aonde raramente alguma coisa acontece.

É uma rua na qual moram poucas pessoas, passam poucos carros e há muitos prédios baixos. Um lugar aonde as crianças não fazem traquinagens, tampouco jogam bola na pista. A única casa agitada é a 246, bem na frente do San Remo. É observando com circunspeção a inquietude e os hábitos pouco convencionais de seus vizinhos de frente que a vida desta senhora ganha um pouco de movimento. Varre sem necessidade a calçada limpa do edifício sempre que alguma coisa nova acontece. A vassoura é seu disfarce. Enquanto raspa as cerdas contra o chão, monitora de soslaio a movimentação e apura os ouvidos afim de colher o máximo de informações. O casal de pastores alemães da 246 já nem faz estardalhaço quando ela atravessa a rua e gentilmente varre, também, a calçada da casa: nem sempre é possível enxergar e ouvir com clareza a oito metros de distância. Via de regra, quando a missão fracassa ou não consegue ligar os fragmentos observados, timidamente se aproxima de algum dos moradores da casa. Puxa assunto falando, geralmente, sobre os animais e, como um detetive, astutamente pergunta o que quer saber. Os indivíduos da 246 raramente dão respostas congruentes.

Dia após dia, suas principais atividades são ouvir, entre uma vassourada e outra, relances do cotidiano de uma família não muito comum e o CD da dupla Bruno e Marrone em volumes pouco módicos. Esperamos que o gato não morra e que a padaria não feche.