A HERANÇA

Bem, tudo aconteceu quando resolvi me tornar escritora. Com a morte de meu avô, por desejo expresso em seu testamento, coube-me por herança uma propriedade que outrora teria sido uma fazenda de cultivo de cana-de-açúcar; ainda se pode ver as ruínas do engenho onde meu avô transformava pelos métodos rudimentares a cana no açúcar, usando para tal a tração animal, que era a força motora das engrenagens. Mantinha-se de pé a construção do hoje velho casarão com suas paredes escuras e maltratadas pelo tempo e que abrigou muitas décadas o senhor do engenho e sua numerosa família.

Toda a terra estava coberta por uma vasta vegetação, sobressaindo-se em algumas partes, restos de antigas construções.

O lugar era ideal para o que me propunha fazer. Escrever um livro cujo enredo seria: o terror sofrido por uma velha paralítica ante as sandices do seu filho psicopata. Estava tão entusiasmada com a idéia do meu livro, que não relutei em ir de malas e bagagens passar uma temporada no velho casarão, acompanhada apenas de uma idosa criada.

Até então não havia me interessada por esta herança. Vivia numa cidade grande entregue aos meus estudos e divertimentos próprios da minha idade. Tinha uma boa mesada e isso facilitava levar uma vida despreocupada. Contava 22 anos de idade; com eles, acumuladas várias frustrações. Tentei ser pintora, escultora, atriz e na ânsia inconstante de me afirmar em alguma coisa, resolvi que me tornaria escritora.

Havíamos chegado pela manhã. Levamos o dia todo para por em ordem o velho casarão; embora tanto eu como a criada demonstrássemos sinais de cansaço, nos sentíamos recompensados. Decidimos que ocuparíamos apenas a parte térrea da casa. A parte superior, onde ficavam os quartos de dormir, continuaria como estava, fechada. Trouxe comigo todo o material necessário à nossa comodidade, inclusive lampiões, não contaríamos com luz elétrica.

Terminado o jantar improvisado, apanhei um dos lampiões e me dirigi à varanda da frente. Sempre fui uma criatura cética, sem medo, mas confesso que por alguns instantes um friozinho me percorreu todo o corpo. Lá fora a escuridão era total e o silêncio apenas quebrado pelo canto irritante dos grilos e o coaxar dos sapos no carrego situado a uns cinqüenta metros da casa, cujas águas lavavam na sua passagem as raízes salientes de um frondoso ingazeiro. Foi então que me lembrei da história fantástica que meu avô costumava contar a respeito desse ingazeiro.

Dizia que o fato não havia acontecido com ele, mas sim com a minha avó. Segundo o meu avô, quando residiam na fazenda, por várias vezes minha avó acordara terrivelmente nervosa, alguém que ela não conhecia, todo vestido de preto, tendo as mãos acorrentadas lhe aparecia querendo que ela aceitasse um tesouro, que ele, o desconhecido, havia enterrado em vida lá debaixo do ingazeiro. E que para ela ficar de posse desse tesouro teria que ir sozinha, à meia noite de uma sexta-feira, ao local indicado. Veria ela um sinal: um corpo sem cabeça. E ao dizer isso, fazia com que a minha avó visse o terrível corpo mutilado. Essas visões a enchiam de terror e nunca ela tivera coragem de atender ao pedido do fantasma desconhecido.

Depois de recordar toda esta fantasmagórica visão da minha avó, deixei a varanda, meu corpo reclamava cama, fechei a grande porta, que produziu um ruído ecoando por todo o casarão. Segui em direção ao meu quarto improvisado, guiada pela luz do lampião. A criada já dormia a sono solto.

Acordei no dia seguinte bem disposta. O orvalho condensado sobre a vasta relva deixava no ar um cheiro gostoso, o sol brilhante que despontava junto com o silêncio em minha volta, só quebrado pelo canto dos pássaros, me fazia sentir a natureza em toda a sua plenitude.

Tentei iniciar o meu livro, mas não achei inspiração. Apesar do aspecto sombrio do velho casarão, tudo o mais era um convite à liberdade, ao desejo de sair correndo pelos campos, de sentir-me livre. Foi o que fiz, passei toda a manhã explorando os recantos da minha propriedade, que embora em lastimável estado de abandono, parecia aos meus olhos o édem que todos nós buscamos.

Decidi que ficaria com os dias livres, escreveria na parte da noite, o clima a essa hora seria mais propício.

Apesar do meu recolhimento deliberado, longe do burburinho da cidade grande, os dias não se tornaram longos, com rapidez se passou uma semana. Com respeito ao meu livro, confesso o meu desapontamento, malgrado todos os esforços, ainda não havia conseguido sair do primeiro capítulo e já não sabia mais o que fazer com os meus dois personagens, a velha paralítica e seu satânico filho.

Talvez a frustração que começava a despontar pela incapacidade de mais uma realização fosse responsável pela insônia terrível que estava sentindo naquela noite. Olhei o relógio, já passava das duas da madrugada. Rolava na cama de um lado para o outro e nada de conseguir dormir. Era tudo muito intolerante, principalmente o silêncio pesado e a quase escuridão que envolvia o quarto. Em dado momento fiz menção de me levantar, ia procurar alguma coisa para tomar que me fizesse dormir. Foi aí que tudo aconteceu... No exato momento em que me ergui da cama, vi diante de mim a mesma visão apavorante de que tanto falava meu avô!!!!!!

Tudo se passou numa fração de segundo, mas foi o bastante para jogar por terra todo o meu ceticismo e coragem. Era real demais aquele homem todo vestido de preto com os braços estendidos em minha direção como a pedir que o libertasse da pesada corrente que envolvia seus pulsos!

Não sei se gritei, se desmaei, quando dei conta de mim já era dia claro. Resolvi que não ficaria ali nem mais uma noite!!! Daria por encerrada a minha curta carreira literária.

E dos dias passados no velho casarão, além do susto, trouxe comigo a insatisfação de mais uma meta inatingida. Mas por outro lado, o contato com a natureza me fez pensar que poderia me tornar uma paisagista. A idéia me pareceu ótima.

E lá se ia mais uma tentativa...

Zélia Maria Freire
Enviado por Zélia Maria Freire em 14/11/2008
Reeditado em 15/11/2008
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