A RAZÃO OU A FELICIDADE?
“Exorto-vos a gozar, quanto
Puderes, essa vida que é bem
Pouco, sem temerdes a morte
Que nada é” (Voltaire)
Outro dia fui questionada a respeito do que vem a ser felicidade; confesso que não me sai bem na resposta, pois nada é tão difícil quanto à elaboração de uma definição, contudo, sobre tal assunto tenho uma história para contar, cuja moral é a que Voltaire afirma acima.
Conta Voltaire, que nas suas viagens encontrou um velho Brâmane, (sacerdote que oficiava os sacrifícios do Veda) muito sábio, cheio de espírito e erudição, além de rico, o que o fazia ainda mais sábio, nada lhe faltando, por isso não tinha necessidade de enganar a ninguém; e, quando não se divertia, ocupava-se em filosofar. Perto de sua casa, que era bonita, bem ornamentada e cercada de encantadores jardins, morava uma velha hindu, carola, imbecil e muito pobre.
O velho sacerdote dizia-se infeliz; há quarenta anos estudava e considerava esse tempo perdido, ensinava aos outros, e ignorava tudo, o que enchia a sua alma de humilhação e desgosto, tornando a sua vida insuportável. E afirmava:
“ nasci, vivo o tempo e não sei o que é o tempo; acho-me num ponto entre duas eternidades e não tenho a mínima idéia da eternidade. Sou composto de matéria, penso e nunca pude saber porque coisa é produzido o pensamento; ignoro se o meu entendimento é em mim uma simples faculdade, com a de marchar, de digerir e se penso com a minha cabeça como seguro com as minhas mãos. Não só o princípio de meu pensamento me é desconhecido, mas também o princípio dos meus movimentos: não sei porque existo. Imploram-me, “dizei-me como é que o mal inunda toda a terra”. Sinto-me nas mesmas dificuldades que aqueles que fazem tal pergunta: digo-lhe algumas vezes que tudo vai o melhor possível, mas os que sofrem não acreditam nisso, nem eu tampouco. Vou consultar meus companheiros: respondem-me uns que o essencial é gozar a vida e zombar dos homens; outros julgam saber alguma coisa e perdem-se em divagações. Sinto-me às vezes à borda do desespero, quando penso que, após todas as minhas pesquisas, não sei nem para onde vou, nem o que me tornarei.”
O senso, a boa fé, a luz que havia no entendimento, a sensibilidade no coração não impediam o velho Brâmane de ser um grande infeliz.
Prosseguindo na sua narrativa, Voltaire nos fala do encontro com a velha, vizinha do Brâmane, a quem perguntou se alguma vez se afligira por saber como era a sua alma. A pobre velha não entendeu a pergunta: nunca na sua vida refletira um momento sobre um só dos pontos que atormentavam o Brâmane; acredita de todo coração nas metamorfoses de Vishnu e, desde que algumas vezes pudesse conseguir água do Ganges para se lavar, julgava-se a mais feliz das mulheres.
Impressionado com a felicidade daquela pobre criatura, o filósofo trava o seguinte diálogo com o Brâmane:
- Não te envergonhas de ser infeliz, quando mora à tua porta uma velha que não pensa em nada e vive contente?
- Tens razão – responde o Brâmane; - mil vezes disse comigo que seria feliz se fosse tão tolo como a minha vizinha, no entanto não desejaria tal felicidade.
“Essa resposta me causou mais impressão que tudo o mais – afirma Voltaire – consultei minha consciência e vi que na verdade também não desejaria ser feliz sob a condição de ser imbecil. Expus a questão a filósofos e eles foram da minha opinião. No entanto, dizia eu, há uma terrível contradição nessa maneira de pensar. Pois de que se trata, afinal? De ser feliz. Que importa, pois ter espírito ou ser tolo? Mais ainda: aqueles que estão contentes consigo estão bem certos de estar contentes; mas aqueles que raciocinam não se acham tão certos de bem raciocinar. É claro, dizia eu, que se deveria preferir não ter senso comum, uma vez que este contribui, o mínimo que seja para o nosso mal-estar. Todos foram de minha opinião e todavia não encontrei ninguém que quisesse aceitar o pacto de se tornar imbecil para andar contente. Donde concluí que, se muito nos importamos com a ventura, mais ainda nos importamos com a razão. Mas refletindo bem, parece uma insensatez preferir a razão à felicidade. Como se explica, pois, tal contradição? Como todas as outras. Aí há muito de que falar.”
Persistindo também, em mim, a dúvida cruel entre a razão expressa por todos os credos e a imbecilidade de Um Capilé Sorriso, só me resta externar os meus agradecimentos a Voltaire, de quem me fiz “parceira”, extraindo de seus escritos (Zadig ou o Destino) a “ História de um Brâmane”.