A gente não quer só comida
Fim de ano outra vez. Contagem regressiva. Começam aquelas comemorações a que tenho verdadeiro horror.Não que eu não vá, também não sou hipócrita.Mas são nessas ocasiões que você pode observar a mediocridade e superficialidade das relações nas quais estamos inseridos, estigmatizados.
Essa época do ano deixa as pessoas mais “boazinhas”. É tempo de pensar nos desfavorecidos, nos moradores de rua, nas crianças que trabalham no farol. Sem contar ainda, que você é até capaz de sorrir para aquela pessoa que trabalhou ao seu lado o ano todo, dividindo o mesmo ambiente. Falar bom dia pra ela é um tamanho sacrifício. Você quer mais é que ela se dane! Ah!!! Mas agora o espírito natalino deixou seu coração mais amolecido, aumentou seu grau de compreensão e tolerância com o próximo. Você vai até participar do amigo secreto da empresa só para provar para as pessoas que seu mau-humor crônico foi curado, você elevou seu espírito, está de bem com a vida (essa é a pior expressão que alguém já pode ter inventado). Nem menciona que nos outros anos gastou uma fortuna em presente e recebeu aquela “lembrancinha” de R$ 1,99. E dessa vez, jura que não vai pedir para trocar o papelzinho se você tirar alguém que não suporta.
O ponto não é esse. Acontece que nessa época se acentua a auto-cobrança.É normal fazermos uma análise das atitudes e da consciência. Não pelo que não fazemos pelos outros, mas na maioria das vezes pelo que não fazemos nem por nós mesmos. E isso gera uma culpa de proporções que não calculamos, porque fica lá, escondida, disfarçada. Isso reflete nas nossas atitudes, no trabalho, na vida familiar e afetiva. Cobramos das pessoas próximas a atenção que não damos, o bem que não fazemos e a saciedade de fome que ignoramos.
Fui abordada por uma pessoa que lidera um desses movimentos de Ação Social que arrecada alimentos para os necessitados do Nordeste. Em absoluto, não tenho nada contra e contribuo quando me sinto a vontade. O que me intriga é : por que só nessa época? Se fosse um movimento menos sazonal, seu efeito teria uma extensão maior, seria menos contrastante. As pessoas que são beneficiadas com essas campanhas, passam o tempo todo esperando que o ano chegue logo ao fim, pois sabem que terão comida de qualidade . Vou além : qualidade nada, elas vão comer!!
Aí, quase todo mundo se sente meio papai-noel e quer mais é se livrar do seu purgatório interno. E o que é pior, acreditam que Deus lhes concederá graças infinitas por ter “ajudado” a um irmão. Sou a favor de ajudar aquela pessoa que esteja de repente à sua frente na fila do caixa do supermercado, num dia qualquer. Vemos muitas vezes pais ou mães contando moedinhas prá comprar leite, arroz, feijão. Que não seja sempre, mas quando tiver de ser, que seja sincero.
Quando me deparo com campanhas desse tipo em épocas específicas e, principalmente agora, penso que somos seres diferentes que vivem no mesmo planeta: os “normais” fazem no mínimo três refeições diárias (inclusive eu) e os "outros" são aqueles que só comem no Natal.
Tem algo errado?