Porque era ele; porque era eu.

 

 

     Foi lendo A Cidade das Palavras de Alberto Manguel que tomei conhecimento da explicação de Montaigne para a sua amizade com Etienne de la Boétie. Já li todos os ensaios de Montaigne e não me lembrava dessa passagem e como o tenho sempre na cabeceira fui lá conferir. A tal citação se encontra no ensaio 38 do livro 1: Da amizade, todo rabiscado por várias de minhas leituras.  No entanto passei em branco por essa frase que tanto me impressionou agora. Mas valeu porque tive a oportunidade de reler o ensaio mais uma vez.

    Trocando em miúdos, Montaigne escreveu todo o artigo para explicar porque a sua amizade com La Boétie era especial, diferente de todos os tipos de amizade. A amizade perfeita. Tão perfeita e tão rara que já é muito vê-la (aparecer) em cada três séculos.

    Segundo a teoria de Montaigne o que comumente chamamos de amizade não passa de relações motivadas por interesses públicos ou privados, sejam eles familiares, sociais ou de qualquer outro teor, mas sempre visando algo pessoal.

    Achei muito interessante o modo como ele explicou porque a afeição que existe entre pais e filhos não pode ser considerada amizade. Segundo ele toda amizade se baseia no fator comunicação o que é impossível entre pais e filhos por motivos inerentes a condição de serem exatamente pais e filhos. As relações entre pai e filho são movidas por deveres recíprocos impostos pela natureza. Algo assim como: a um amigo se pode falar tudo, os sentimentos mais íntimos, mas isso não pode ser feito entre pai e filho. Existe uma barreira entre o que um pode falar para o outro por causa da hierarquia.

     Ele também acha difícil que irmãos possam ser realmente amigos porque existe muita coisa a separá-los. Uma delas é a questão da herança. Outra, o fato de se esperar que irmãos sejam iguais, ou seja, criados iguais, ou pelos mesmos pais, devem seguir os mesmos caminhos o que torna inevitável o choque entre eles já que cada um é um indivíduo com características próprias.

    Este seria o tipo de amizade imposta pelas obrigações naturais ou pela lei. Não depende de nossa escolha. Uma amizade que eu diria com A maiúsculo precisa ser formada a partir do livre arbítrio e não da obrigação.

    Montaigne era homem e viveu no século XVI. Isto deve ser suficiente para explicar o que ele achava da afeição entre homens e mulheres.   Posso entendê-lo e não vou chamá-lo de babaca. Pelo menos por enquanto. Baseado inclusive no estudo de filósofos anteriores a ele, garante que é impossível haver amizade entre homem e mulher. É complicado explicar aqui todos os seus argumentos, só lendo o seu ensaio. Vou tentar fazer uma síntese, se não farei outro ensaio ou serei acusada de plágio. Pela mulher o homem sente paixão que considera um sentimento inferior. Argumenta que já teve os dois sentimentos simultaneamente, a amizade e a paixão por uma mulher: cheia de nobreza, manteve-se sempre a primeira (a amizade) nas regiões elevadas, olhando desdenhosamente para a outra, que, quase invisível, pairava muito mais baixo.  

     Tem o meu ensaísta uma visão bem pessimista do casamento: considera ser um negócio que restringe a liberdade do homem e que em virtude de mil e um incidentes estranhos e imprevisíveis que se misturam a ele acaba rompendo todas as ligações afetivas que pudessem ter existido entre o casal. Além da mais as mulheres não estavam em condições de participar de conversas e trocas de idéias, por assim dizer necessárias à prática dessas relações de ordem tão elevadas que a amizade cria. Diz ele ainda que a alma feminina não possui vigor suficiente para sustentar esse forte sentimento de duração ilimitada. Foi aqui que escrevi  há muito tempo atrás, tão atrás que custei a decifrar as letras que rabisquei com minha lapiseira – IDIOTA.

       Eu já estava até pensando que ele e Etienne pudessem ter uma relação homossexual, mas isto também logo foi descartado porque ele escreveu: esse outro gênero de licenciosidade contra a natureza que era permitida entre os gregos, mas que nossos costumes reprovam com razão (...) não atendia (...) ao atendimento perfeito e à conformidade de sentimentos que a amizade aspira. E ele explicava de modo bem claro as relações homossexuais entre os gregos, sempre entre um velho rico e um jovem bonito, podiam geralmente atender a paixão do velho e ao interesse do jovem. Nunca seria amizade já que nem teriam o que conversar devido à diferença de idade e de interesses na vida.

         Foi nesse momento que encontrei a famosa frase que me impressionou.  Na amizade (a verdadeira) as almas entrosam e se confundem em uma única alma, tão unidas uma a outra que não se distinguem, não se lhes percebendo sequer a linha de demarcação. Se insistirem para que eu diga por que o amava, sinto que eu não saberia expressar senão respondendo: porque era ele; porque era eu.  E então ele explica de uma forma tocante: (...) intervém em ligação dessa natureza uma força inexplicável e fatal que eu não saberia definir. Nós nos procurávamos antes de nos termos visto pelo que ouvíamos um acerca do outro e nascia em nós uma afeição em verdade fora de proporções com o que nos era relatado, no que vejo como que um decreto da Providência. (...) em nosso primeiro encontro casual (...) por ocasião de uma festa pública e em numerosa companhia, sentimo-nos tão atraídos um pelo outro, já tão próximos, já tão íntimos, que desde então não se viram outros tão íntimos como nós.

        Um dia talvez eu me anime a contar aqui a história da amizade entre esses dois homens maduros, filósofos e humanistas de espírito evoluído. Por hoje quis apenas mostrar através dessa frase tocante que intitula este meu texto que existem coisas inexplicáveis nas relações entre as pessoas quando é melhor simplesmente dizer: porque era ele e porque era eu. E a partir daí simplesmente calar.