A LIÇÃO DO "NEGÃO"
A LIÇÃO DO “NEGÃO”
Nelson Marzullo Tangerini
A velhinha, como de costume, acordou cedo e foi fazer suas comprinhas na feira do Leblon.
Podemos imaginar os passos cuidadosos de uma velha senhora, dona de uma sabedoria luminosa.
Próximo à barraca de bananas, a velhinha avista um garoto comendo da fruta e, em seguida, atirando a casca na calçada. Assim, sem a menor preocupação se alguém trilharia aquele caminho.
Vendo na criança um dos seus netos, a velhinha, indignada e prevendo um grande acidente, coisa muito comum a todos os idosos, aproxima-se do menino e, carinhosamente, lhe diz, com delicadeza:
- Meu filho, não faça isto. Alguém pode escorregar nessa casca, levar um tombo, quebrar uma perna, um braço, a espinha. Pode até morrer.
O pai, ao lado, que olhava a tudo, com extrema arrogância, responde à velhinha sem pestanejar:
- A senhora se meta na sua vida, na vida dos seus netos, sua velha nojenta. Vá para casa fazer tricô.
A velhinha ficou passada, decepcionada, sem ação, diante de tanta falta de educação.
Talvez aquele homem estúpido desencarne antes de ficar velho, não tendo tempo de sentir na pele o peso da discriminação contra o idoso em nossa sociedade.
Talvez a sociedade mude e ele ainda conheça outra velhice, não mais marginalizada por gente de sua estirpe e venha a se arrepender de atitude tão grosseira e tão covarde.
Pois bem... Um feirante, um baita “negão” de uns três metros de altura e dois de largura, que carregava uns cinco caixotes na cabeça, não se contendo com tanta ignorância, resolve interferir no assunto e diz carinhosamente para a velhinha:
- É isso aí, Vovó. Eu moro lá no morro, sou “criôlo”, não deixo meus filhos fazerem isso lá em cima e não trato uma senhora desta maneira.
Falando bem alto com a velhinha para o grafininho entender...
Pai e filho ouviram o que o gentilíssimo “negão” falou e, lógico, ficaram calados, diante daquele armário duplex. Meteram o rabo entre as pernas e saíram de fininho, sumindo na multidão. (*)
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(*) Esta crônica foi escrita a partir de um fato verídico. “A Velhinha” é uma de minhas tias, que, indignada, contou-me o ocorrido pelo telefone, me pedindo uma crônica, centrando a gentileza do cidadão que a defendeu. Conservei a palavra “Criôlo”, utilizada pelo próprio feirante, morador da Rocinha, e espero não ter problemas relacionados ao racismo.
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Nelson Marzullo Tangerini, 53 anos, é escritor, jornalista, poeta, compositor, fotógrafo e professor de Língua Portuguesa e Literatura. É membro do Clube dos Escritores Piracicaba [ clube.escritores@uol.com.br ], onde ocupa a Cadeira 073 – Nestor Tangerini.
nmtangerini@yahoo.com.br, nmtangerini@gmail.com