Em Terras do Demo: Percurso Alternativo
EM TERRAS DO DEMO: Percurso Alternativo
“Terras do Demo” não é apenas o título do segundo romance de Aquilino Ribeiro, escrito em 1919. É uma área geográfica do país, que o autor muito bem conhecia por ter sido lá nascido e criado. Uma zona rural, perdida no interior de Portugal, esquecida pelos governantes de Lisboa. Como ele bem definiu: “... dessas aldeias montesinhas que moram nos picotos da Beira, olham a Estrela, o Caramulo, a cernelha do Douro e, a norte, lhes parece gamela emborcada o Monte Marão (...) nunca Cristo ali rompeu as sandálias, passou el-rei a caçar, ou os apóstolos da Igualdade em propaganda”.
Quis o destino que fizesse escala numa aldeia na Serra do Açor e lá pernoitasse. Duas horas pela estrada da Beira levaram-me ao Carregal, no Concelho de Sernancelhe. Junto à Igreja Paroquial do sec XVI uma seta indica a direcção do “Pátio Aquilino”, apenas a escassos metros. Um magnífico pórtico de granítico dá entrada para um largo rodeado por habitações de arquitectura típica da região. A casa que procurava é a última do lado esquerdo e está assinalada por uma placa alusiva ao centenário do nascimento do escritor. Lá estava ela, simples, bonita, de fachada em pedra e com o seu típico patim (“a escada que conduz ao primeiro piso, como se diz em linguagem beiroa” como traduziu Aquilino em “ Um Escritor Confessa-se”, um dos seus últimos livros).
À saída do Pátio procuro o cemitério e os ciprestes que fazem parte da história contada no livro “Cinco Reis de Gente”. Escrito em 1948, tinha o autor 53 anos é um exercício de recordações quase mágicas de uma infância feliz, passada no Carregal. Um século passou e os dois gigantes lá estão, como que fazendo troça do tempo: “Estes ciprestes, quando nos dias de Inverno eu ia esmurrar o nariz contra as vidraças em que a chuva rufava e desdobrava suas toalhas de água, pareciam entesar-se ainda mais na corpulência de bronze. Batidos pelo vento, não gemiam como as demais árvores. Também não esbracejavam maciços como eram, apenas inclinavam levemente a coruta esguia, percorridos por um brando tremor. Eu olhava para eles, assim mudos, fixos e sobranceiros, e recebia deles uma lição de altitude e de firmeza.”
Voltando ao Pátio encontro um ancião de sorriso tímido e olhos curiosos. Por ali ficou a acabei por entabular conversa com ele. Armindo Penetra, apresentou-se, orgulhoso, com a sua pronúncia beirã e voz de timbre agudo. Fez-me lembrar a voz do Mestre, falando de Paris, onde viveu vários anos, e onde garante que nunca foi infeliz.
A vida de Aquilino dava um romance histórico. A sua vida entrelaça-se com as peripécias do fim da monarquia, as atribulações da 1ª República e a repressão da ditadura do Estado Novo.
Do Carregal vai para o colégio da senhora da Lapa. Depois para Lamego, Viseu e por fim, por pressões da mãe que queria à força que fosse padre, entra para o seminário de Beja. Que não tinha vocação para o sacerdócio já ele sabia mas aguentar aquele ensino árido e monótono é que não aguentou. O jovem Aquilino fervia em pouca água e em troca de uma resposta torta a um padre foi-lhe proibido o passeio dominical. Passarinho na gaiola? Nem pensar! Bateu com a porta e partiu para Lisboa. À descoberta. Hospedando-se em pensões modestas. Tentando sair da cepa torta apresentou-se ao dono de um jornal para pedir emprego. Começa a publicar os seus primeiros artigos no jornal republicano a “Vanguarda”, a traduzir livros estrangeiros em edições que ignoram o seu nome e a escrever ficção sob a forma de um folhetim chamado “A Filha do Jardineiro” que não era mais que uma obra de propaganda republicana.
A Lisboa de 1907 ferve em agitação política. O partido republicano ataca ferozmente o regime monárquico no parlamento pondo a descoberto desfalques e escândalos envolvendo o governo e a família real. A população civil conspira. Existem associações secretas organizadas: a Carbonária e a Maçonaria. Aquilino aceita o pedido de Luz Almeida (o fundador da Carbonária) para guardar uns caixotinhos no seu quarto alugado na rua do Carrião. À hora marcada, para espanto seu os caixotinhos eram afinal uns caixotões de explosivos que dois carbonários carregaram escada acima. Observou estarrecido, os dois homens manuseando descuidadamente o material explosivo. E claro está: dá-se a explosão fatal. Os dois carbonários morrem e Aquilino atordoado e surdo segue para a prisão.
Passarinho na gaiola? Sim... mas apenas por uns meses. Tempo suficiente de engendrar uma artimanha para desmontar a fechadura da porta e fugir. João Franco, o ministro ditador do Rei, fica fulo. A autoridade do estado estava posta em causa. Amigos republicanos escondem-no numa casa perto da prisão. É desse quarto que no dia 1 de Fevereiro vê passar as gentes em correria pelas ruas como se fugissem das bátegas invisíveis. Os sinos das Igrejas começam a tocar. Alguém vem avisá-lo: “mataram o Rei!” “Que grande desconcerto!” exclama, caindo de bruços na cama. Na véspera, Alfredo Costa viera visitá-lo, e contara-lhe o plano que tinha em conjunto com Manuel Buiça e outros três para darem caça a João Franco. O plano não visava o rei. Os dois regicidas mortos, não encontrando o alvo, tinham improvisado e atacado a família real.
O atentado não fez cair a Monarquia e forçou ao exílio o jovem escritor. Em Paris inscreve-se no curso de filosofia da Universidade Sorbonne. Escreve crónicas que envia para a imprensa portuguesa, nomeadamente para o jornal “A Beira” e para a “Ilustração Portuguesa”.
Em 5 de Outubro de 1910 é proclamada a República em Portugal. Mas nem por isso a sua vida passa a ser menos conturbada. Continuará em luta contra regimes ditatoriais o que o levará mais dois exílios para Paris um dos quais após nova evasão da prisão, desta vez em Viseu.
Aquilino casa duas vezes. Primeiro com Grete de quem tem um filho. Mais tarde (após enviuvar da primeira esposa) Com Jerónima, filha do antigo Presidente da República, Bernardino Machado, com quem vem a ter mais um filho.
Em 1960 é proposto para prémio Nobel da Literatura pelo professor catedrático Dr. Francisco Vieira de Almeida, da Faculdade de Letras de Lisboa. A candidatura é subscrita por José Cardoso Pires, David Mourão-Ferreira, Urbano Tavares Rodrigues, José Gomes Ferreira, Maria Judite de Carvalho, Joel Serrão, Mário Soares, Vitorino Nemésio, Abel Manta, Alves Redol, Luísa Dacosta, Vergílio Ferreira, entre muitos outros
Mas afinal o que me encanta tanto neste escritor que morreu seis anos antes de eu ter nascido? Descobri Aquilino em Fevereiro de 2008. Pensava que conhecia razoavelmente bem os escritores portugueses clássicos, os quais tenho apreciado desde que comecei a interessar-me pela leitura. De Aquilino conhecia o nome de o ver durante décadas na estante do meu avô. Na escola nunca mo mencionaram. Um dia li um texto que como dedicatória dizia: ” Este pequeno conto, em três capítulos, constitui homenagem a Aquilino Ribeiro, um dos maiores e mais esquecidos romancistas portugueses.” Seria possível que um escritor deste calibre me tivesse escapado?
Desde esse momento li nove livros de Aquilino Ribeiro. Nunca nenhum escritor me marcou tão profundamente. Foi uma revelação. Como se de repente uma torneira se abrisse e jorrassem palavras. Palavras novas. Palavras obscuras. Umas velhas, outras re-inventadas, outras simplesmente desconhecidas por não serem corriqueiras. Mas todas elas tesouros, pérolas, magníficas descobertas que me revelavam novas hipóteses de transmitir ideias e nomear sentimentos. Que riqueza espantosa me ofereceu Aquilino!
Os primeiros livros foram lidos de dicionário na mão, pois claro! Mas ao contrário dos críticos que por esse facto lhe desprezaram a obra, eu reconheci nesse processo um enorme prazer. Descobrir! Aprender! Gozar a novidade! Tal como ele afirma no prefácio de “Terras do Demo” (o meu preferido, até agora) “um renascimento literário tem de volver às origens, aos clássicos e ao povo”.
No final da Idade Média, o homem entrou no Renascimento precisamente por ter voltado aos clássicos gregos. E nessa altura reencontrou a Terra e o Homem. Ou seja: reencontrou-se entrando na era Moderna. Ler Aquilino é encontrar o Homem. A Natureza, que ele descreve como ninguém. Imagens tão belas quanto as que li nos seus livros nunca houvera lido antes. A sua sensibilidade e sentido estético são fora do comum. Vejamos um exemplo: “Apendoavam os centeais, e o frémito das espigas era mais ligeiro que a ondulação do mar mais benigno. O verde retinto vestia os campos até para lá de meia légua de bom andar, na encosta de Segões, onde a seara empoeirada do sol, já menos paveia que farfalha, barrava a serra da Estrela, em sua imensidade extática de bronze, dum esmaecido esmeralda. Pinhais taciturnos, baldios de fieito e de sargaço eram levados na envolta efusiva do verde; e céu azul, terra em festa, os animaizinhos do senhor cantavam. Cantavam. Cantavam todos nos seus jardins de serradela, ou à boca dos agulheiros, o grilo, o ralo, a cigarra vadia; na mata que, às horas do poente, estendia sua sombra pelos mortos, a rola, e a popa arrulhavam; e ali nas cerejas do quintal, que já tinham bichos, o passaredo moinante parecia uma aula de meninos malcriados. A Primavera despedia discretamente, sem avisar, vinha aí o Verão, um senhor Verão de chapéu de palha e cara pintada das amoras e das uvas. Aves e insectos celebravam a vinda estrondosa do grande rabaceiro, que lhes trazia fêmea, um silo, e farândolas de mosquitinhos loucos para encher o papo.” A isto se chama celebrar a Natureza.
Durante a minha viagem às Beiras pude reflectir sobre as mudanças que o tempo impôs nas populações que outrora o escritor considerava em isolamento. As “Terras do Demo” evoluíram e deixaram entrar a civilização. As auto-estradas e os itinerários principais permitiram que o Concelho de Sernancelhe se tornasse mais próspero e menos longe dos hábitos citadinos. As diferenças entre “Cidade” e “Serras” esbateram-se. A Beira Alta continua a ser um local belíssimo mas agora com gente tão ou mais culta como a que se encontra na capital.
Curiosamente, em termos de paisagem e características geográficas, a região que na minha mente ficou associada ao imaginário das aldeias de Aquilino, as tais Terras do Demo, foi a Serra do Açor. Estradas estreitas serpenteando pelos montes a fora até ao alto. Castanheiros (as tais arvores que ele dizia serem cidades para os pássaros), carvalhos, aveleiras, medronheiros, pinheiros bravos, o tojo, a urze, o rosmaninho, a giesta e a carqueja fazem parte da flora que também existe na outra Beira. E a fauna também é semelhante. Tirando o Açor, ave de rapina típica desta zona montanhosa que se encontra entre a Serra da Estrela e a da Lousã, as outras espécies animais são comuns com as outras Beiras, como a raposa, o javali, a gineta, a poupa real e o melro.
As aldeias têm um traçado e uma disposição típicas de um povoamento de montanha. Abrigadas do vento, as casas trepam pela encosta e para as percorrer de cima a baixo temos calcorrear escadas de pedra. O que aqui é diferente é a pedra: o Xisto. As fragas são de xisto enquanto na Beira Alta e na Beira Baixa (e também em Trás-os-Montes) predomina o granito. Nesta paisagem monumental consegui imaginar o almocreve Malhadinhas a cavalo na sua “égua pimpona”, trupe, trupe, a sentir o frio da “neve ladroa”, percorrendo as aldeias dos picotos da serra...
Sente-se a desertificação originada pelo êxodo das populações para as grandes urbes. Tal como se sente na Beira Baixa. Mas é nestas zonas, onde ainda alguns residentes resistem, que reconheço perdurar o olhar de Aquilino. O sentir, o amor, o gosto que ele tinha pelas belezas da natureza está presente e bem vivo naqueles que amam as suas Beiras. E mesmo vivendo a maior parte do ano longe, não a esquecem, nem a abandonaram. Preservam-na, acarinham-na, mimam-na. Tratando das aldeias, pintando as habitações, preservando as casas de xisto e fazendo tudo o que está ao seu alcance para as manter tal como elas são. E sempre que podem, principalmente no Verão, regressam em força, para as festas. E de novo a alegria de um povo regressa às Serras.
Comum aos beirões é o gosto pelo trabalho. A ele nunca se furtam. Dão o corpo ao manifesto. Produzem. São poetas à solta. Escrevem na terra, com a ponta da enxada, linhas que fecundam com sementes fazendo nascer a vida. Realizam obra.
Aquilino Ribeiro quis um dia que o seu epitáfio fosse: “mais não pude”. Também esses homens não baixam os braços, remando sempre contra maré. Contra a desertificação, a esterilidade, o esquecimento, a alienação. Para que seja possível que o “olhar de Aquilino” continue vivo no nosso olhar. O olhar de quem repara, ama e desfruta as alegrias da natureza. E assim, mantêm viva a esperança.
EM TERRAS DO DEMO: Percurso Alternativo
“Terras do Demo” não é apenas o título do segundo romance de Aquilino Ribeiro, escrito em 1919. É uma área geográfica do país, que o autor muito bem conhecia por ter sido lá nascido e criado. Uma zona rural, perdida no interior de Portugal, esquecida pelos governantes de Lisboa. Como ele bem definiu: “... dessas aldeias montesinhas que moram nos picotos da Beira, olham a Estrela, o Caramulo, a cernelha do Douro e, a norte, lhes parece gamela emborcada o Monte Marão (...) nunca Cristo ali rompeu as sandálias, passou el-rei a caçar, ou os apóstolos da Igualdade em propaganda”.
Quis o destino que fizesse escala numa aldeia na Serra do Açor e lá pernoitasse. Duas horas pela estrada da Beira levaram-me ao Carregal, no Concelho de Sernancelhe. Junto à Igreja Paroquial do sec XVI uma seta indica a direcção do “Pátio Aquilino”, apenas a escassos metros. Um magnífico pórtico de granítico dá entrada para um largo rodeado por habitações de arquitectura típica da região. A casa que procurava é a última do lado esquerdo e está assinalada por uma placa alusiva ao centenário do nascimento do escritor. Lá estava ela, simples, bonita, de fachada em pedra e com o seu típico patim (“a escada que conduz ao primeiro piso, como se diz em linguagem beiroa” como traduziu Aquilino em “ Um Escritor Confessa-se”, um dos seus últimos livros).
À saída do Pátio procuro o cemitério e os ciprestes que fazem parte da história contada no livro “Cinco Reis de Gente”. Escrito em 1948, tinha o autor 53 anos é um exercício de recordações quase mágicas de uma infância feliz, passada no Carregal. Um século passou e os dois gigantes lá estão, como que fazendo troça do tempo: “Estes ciprestes, quando nos dias de Inverno eu ia esmurrar o nariz contra as vidraças em que a chuva rufava e desdobrava suas toalhas de água, pareciam entesar-se ainda mais na corpulência de bronze. Batidos pelo vento, não gemiam como as demais árvores. Também não esbracejavam maciços como eram, apenas inclinavam levemente a coruta esguia, percorridos por um brando tremor. Eu olhava para eles, assim mudos, fixos e sobranceiros, e recebia deles uma lição de altitude e de firmeza.”
Voltando ao Pátio encontro um ancião de sorriso tímido e olhos curiosos. Por ali ficou a acabei por entabular conversa com ele. Armindo Penetra, apresentou-se, orgulhoso, com a sua pronúncia beirã e voz de timbre agudo. Fez-me lembrar a voz do Mestre, falando de Paris, onde viveu vários anos, e onde garante que nunca foi infeliz.
A vida de Aquilino dava um romance histórico. A sua vida entrelaça-se com as peripécias do fim da monarquia, as atribulações da 1ª República e a repressão da ditadura do Estado Novo.
Do Carregal vai para o colégio da senhora da Lapa. Depois para Lamego, Viseu e por fim, por pressões da mãe que queria à força que fosse padre, entra para o seminário de Beja. Que não tinha vocação para o sacerdócio já ele sabia mas aguentar aquele ensino árido e monótono é que não aguentou. O jovem Aquilino fervia em pouca água e em troca de uma resposta torta a um padre foi-lhe proibido o passeio dominical. Passarinho na gaiola? Nem pensar! Bateu com a porta e partiu para Lisboa. À descoberta. Hospedando-se em pensões modestas. Tentando sair da cepa torta apresentou-se ao dono de um jornal para pedir emprego. Começa a publicar os seus primeiros artigos no jornal republicano a “Vanguarda”, a traduzir livros estrangeiros em edições que ignoram o seu nome e a escrever ficção sob a forma de um folhetim chamado “A Filha do Jardineiro” que não era mais que uma obra de propaganda republicana.
A Lisboa de 1907 ferve em agitação política. O partido republicano ataca ferozmente o regime monárquico no parlamento pondo a descoberto desfalques e escândalos envolvendo o governo e a família real. A população civil conspira. Existem associações secretas organizadas: a Carbonária e a Maçonaria. Aquilino aceita o pedido de Luz Almeida (o fundador da Carbonária) para guardar uns caixotinhos no seu quarto alugado na rua do Carrião. À hora marcada, para espanto seu os caixotinhos eram afinal uns caixotões de explosivos que dois carbonários carregaram escada acima. Observou estarrecido, os dois homens manuseando descuidadamente o material explosivo. E claro está: dá-se a explosão fatal. Os dois carbonários morrem e Aquilino atordoado e surdo segue para a prisão.
Passarinho na gaiola? Sim... mas apenas por uns meses. Tempo suficiente de engendrar uma artimanha para desmontar a fechadura da porta e fugir. João Franco, o ministro ditador do Rei, fica fulo. A autoridade do estado estava posta em causa. Amigos republicanos escondem-no numa casa perto da prisão. É desse quarto que no dia 1 de Fevereiro vê passar as gentes em correria pelas ruas como se fugissem das bátegas invisíveis. Os sinos das Igrejas começam a tocar. Alguém vem avisá-lo: “mataram o Rei!” “Que grande desconcerto!” exclama, caindo de bruços na cama. Na véspera, Alfredo Costa viera visitá-lo, e contara-lhe o plano que tinha em conjunto com Manuel Buiça e outros três para darem caça a João Franco. O plano não visava o rei. Os dois regicidas mortos, não encontrando o alvo, tinham improvisado e atacado a família real.
O atentado não fez cair a Monarquia e forçou ao exílio o jovem escritor. Em Paris inscreve-se no curso de filosofia da Universidade Sorbonne. Escreve crónicas que envia para a imprensa portuguesa, nomeadamente para o jornal “A Beira” e para a “Ilustração Portuguesa”.
Em 5 de Outubro de 1910 é proclamada a República em Portugal. Mas nem por isso a sua vida passa a ser menos conturbada. Continuará em luta contra regimes ditatoriais o que o levará mais dois exílios para Paris um dos quais após nova evasão da prisão, desta vez em Viseu.
Aquilino casa duas vezes. Primeiro com Grete de quem tem um filho. Mais tarde (após enviuvar da primeira esposa) Com Jerónima, filha do antigo Presidente da República, Bernardino Machado, com quem vem a ter mais um filho.
Em 1960 é proposto para prémio Nobel da Literatura pelo professor catedrático Dr. Francisco Vieira de Almeida, da Faculdade de Letras de Lisboa. A candidatura é subscrita por José Cardoso Pires, David Mourão-Ferreira, Urbano Tavares Rodrigues, José Gomes Ferreira, Maria Judite de Carvalho, Joel Serrão, Mário Soares, Vitorino Nemésio, Abel Manta, Alves Redol, Luísa Dacosta, Vergílio Ferreira, entre muitos outros
Mas afinal o que me encanta tanto neste escritor que morreu seis anos antes de eu ter nascido? Descobri Aquilino em Fevereiro de 2008. Pensava que conhecia razoavelmente bem os escritores portugueses clássicos, os quais tenho apreciado desde que comecei a interessar-me pela leitura. De Aquilino conhecia o nome de o ver durante décadas na estante do meu avô. Na escola nunca mo mencionaram. Um dia li um texto que como dedicatória dizia: ” Este pequeno conto, em três capítulos, constitui homenagem a Aquilino Ribeiro, um dos maiores e mais esquecidos romancistas portugueses.” Seria possível que um escritor deste calibre me tivesse escapado?
Desde esse momento li nove livros de Aquilino Ribeiro. Nunca nenhum escritor me marcou tão profundamente. Foi uma revelação. Como se de repente uma torneira se abrisse e jorrassem palavras. Palavras novas. Palavras obscuras. Umas velhas, outras re-inventadas, outras simplesmente desconhecidas por não serem corriqueiras. Mas todas elas tesouros, pérolas, magníficas descobertas que me revelavam novas hipóteses de transmitir ideias e nomear sentimentos. Que riqueza espantosa me ofereceu Aquilino!
Os primeiros livros foram lidos de dicionário na mão, pois claro! Mas ao contrário dos críticos que por esse facto lhe desprezaram a obra, eu reconheci nesse processo um enorme prazer. Descobrir! Aprender! Gozar a novidade! Tal como ele afirma no prefácio de “Terras do Demo” (o meu preferido, até agora) “um renascimento literário tem de volver às origens, aos clássicos e ao povo”.
No final da Idade Média, o homem entrou no Renascimento precisamente por ter voltado aos clássicos gregos. E nessa altura reencontrou a Terra e o Homem. Ou seja: reencontrou-se entrando na era Moderna. Ler Aquilino é encontrar o Homem. A Natureza, que ele descreve como ninguém. Imagens tão belas quanto as que li nos seus livros nunca houvera lido antes. A sua sensibilidade e sentido estético são fora do comum. Vejamos um exemplo: “Apendoavam os centeais, e o frémito das espigas era mais ligeiro que a ondulação do mar mais benigno. O verde retinto vestia os campos até para lá de meia légua de bom andar, na encosta de Segões, onde a seara empoeirada do sol, já menos paveia que farfalha, barrava a serra da Estrela, em sua imensidade extática de bronze, dum esmaecido esmeralda. Pinhais taciturnos, baldios de fieito e de sargaço eram levados na envolta efusiva do verde; e céu azul, terra em festa, os animaizinhos do senhor cantavam. Cantavam. Cantavam todos nos seus jardins de serradela, ou à boca dos agulheiros, o grilo, o ralo, a cigarra vadia; na mata que, às horas do poente, estendia sua sombra pelos mortos, a rola, e a popa arrulhavam; e ali nas cerejas do quintal, que já tinham bichos, o passaredo moinante parecia uma aula de meninos malcriados. A Primavera despedia discretamente, sem avisar, vinha aí o Verão, um senhor Verão de chapéu de palha e cara pintada das amoras e das uvas. Aves e insectos celebravam a vinda estrondosa do grande rabaceiro, que lhes trazia fêmea, um silo, e farândolas de mosquitinhos loucos para encher o papo.” A isto se chama celebrar a Natureza.
Durante a minha viagem às Beiras pude reflectir sobre as mudanças que o tempo impôs nas populações que outrora o escritor considerava em isolamento. As “Terras do Demo” evoluíram e deixaram entrar a civilização. As auto-estradas e os itinerários principais permitiram que o Concelho de Sernancelhe se tornasse mais próspero e menos longe dos hábitos citadinos. As diferenças entre “Cidade” e “Serras” esbateram-se. A Beira Alta continua a ser um local belíssimo mas agora com gente tão ou mais culta como a que se encontra na capital.
Curiosamente, em termos de paisagem e características geográficas, a região que na minha mente ficou associada ao imaginário das aldeias de Aquilino, as tais Terras do Demo, foi a Serra do Açor. Estradas estreitas serpenteando pelos montes a fora até ao alto. Castanheiros (as tais arvores que ele dizia serem cidades para os pássaros), carvalhos, aveleiras, medronheiros, pinheiros bravos, o tojo, a urze, o rosmaninho, a giesta e a carqueja fazem parte da flora que também existe na outra Beira. E a fauna também é semelhante. Tirando o Açor, ave de rapina típica desta zona montanhosa que se encontra entre a Serra da Estrela e a da Lousã, as outras espécies animais são comuns com as outras Beiras, como a raposa, o javali, a gineta, a poupa real e o melro.
As aldeias têm um traçado e uma disposição típicas de um povoamento de montanha. Abrigadas do vento, as casas trepam pela encosta e para as percorrer de cima a baixo temos calcorrear escadas de pedra. O que aqui é diferente é a pedra: o Xisto. As fragas são de xisto enquanto na Beira Alta e na Beira Baixa (e também em Trás-os-Montes) predomina o granito. Nesta paisagem monumental consegui imaginar o almocreve Malhadinhas a cavalo na sua “égua pimpona”, trupe, trupe, a sentir o frio da “neve ladroa”, percorrendo as aldeias dos picotos da serra...
Sente-se a desertificação originada pelo êxodo das populações para as grandes urbes. Tal como se sente na Beira Baixa. Mas é nestas zonas, onde ainda alguns residentes resistem, que reconheço perdurar o olhar de Aquilino. O sentir, o amor, o gosto que ele tinha pelas belezas da natureza está presente e bem vivo naqueles que amam as suas Beiras. E mesmo vivendo a maior parte do ano longe, não a esquecem, nem a abandonaram. Preservam-na, acarinham-na, mimam-na. Tratando das aldeias, pintando as habitações, preservando as casas de xisto e fazendo tudo o que está ao seu alcance para as manter tal como elas são. E sempre que podem, principalmente no Verão, regressam em força, para as festas. E de novo a alegria de um povo regressa às Serras.
Comum aos beirões é o gosto pelo trabalho. A ele nunca se furtam. Dão o corpo ao manifesto. Produzem. São poetas à solta. Escrevem na terra, com a ponta da enxada, linhas que fecundam com sementes fazendo nascer a vida. Realizam obra.
Aquilino Ribeiro quis um dia que o seu epitáfio fosse: “mais não pude”. Também esses homens não baixam os braços, remando sempre contra maré. Contra a desertificação, a esterilidade, o esquecimento, a alienação. Para que seja possível que o “olhar de Aquilino” continue vivo no nosso olhar. O olhar de quem repara, ama e desfruta as alegrias da natureza. E assim, mantêm viva a esperança.