Pedras na Mesa

A cada dia praticamente, ou a cada semana, ao menos, uma notícia trágica. Dizer que vamos nos acostumando com a violência talvez seja até delicado. Ou uma brincadeira. Na verdade a violência já está dentro da gente (ou sempre esteve), de tão cotidiana que é. Os casos se sucedem e assim vamos nos esquecendo dos de ontem.

A mídia, preocupada com os índices do Ibope, com a venda dos jornais, etc., amplia os acontecimentos. E colabora com a inoculação dos seus detalhes em nosso sangue, no nosso metabolismo. Não há tireóide que agüente. É claro que pouco a pouco não chegaremos a perder o interesse por esse tipo de noticiário. Mas vamos preferir aqueles em que houver certos requintes de crueldade. Ou o exotismo da ação – como assassinar uma menina de 9 anos e colocá-la dentro de uma mala.

Porque os pais jogarem a própria filha do alto de um edifício já não é novidade pra gente. Ou um maluco prometer (e conseguir) acabar com a vida de quem diz que ama, porque talvez achasse que sua amada era um relógio que só poderia sair do braço dele quando ele quisesse, também não será para nós um fato novo.

Os assassinatos por encomenda, como o caso mais recente da psicóloga da Universidade de São Paulo, há muito deixaram de ser novidade. O que pode variar nesses casos são as motivações e a condição social das vítimas, normalmente não encontradas nas camadas consideradas inferiores da população.

Não por acaso os casos referenciados até aqui deram-se em São Paulo, a cidade mais importante do país, sob o ponto de vista econômico-financeiro, a verdadeira locomotiva do Brasil. É claro que poderiam ocorrer em qualquer parte. E se não temos notícias dos prováveis acontecimentos desse tipo nos milhares de bolsões de pobreza espalhados pelo país é porque não teriam para a mídia a importância comercial desejada.

O casal Nardoni, a menina Eloá e agora a psicóloga da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), de Vila Madalena, como muitos outros que poderiam aqui ser mencionados, nos mostram que a banalidade do crime de morte alcança a classe média – baixa ou média propriamente dita – da mesma forma que ocorrem nas camadas mais periféricas. Agravados pela possibilidade, em algumas situações, da demonstração da nossa incompetência policial, não apenas em desvendar os crimes como também em preveni-los ou impedi-los, conforme o que se viu no caso da garota de Guarulhos.

A projeção é a de que situações desse tipo aconteçam cada vez com mais freqüência. E razoável seria a gente querer saber por que.

Quanto mais desenvolvimento, mais conturbação. Sobretudo de caráter emocional ou espiritual. Não se pode negar que a vida há trinta ou quarenta anos era mais calma. Apesar de a expectativa de nossa existência não ser aquela que hoje a medicina, cada vez mais avançada, nos garante. Apesar de hoje termos o celular e com ele resolver um monte de problemas de dentro do carro. Apesar de o PC ter aposentado a máquina de escrever e com ele sozinho podermos digitar um texto, corrigir, apagar, ilustrar e nos valermos até de um instrumento que nos diz se estamos escrevendo corretamente. Apesar de tudo isso, cada vez nos entendemos menos, cada vez precisamos mais de um cachorro que nos venha abrandar a expectativa de uma depressão, cada vez somos menos sinceros, não apenas com os outros, mas até com a gente mesmo. Cada vez se estupra mais ou acontecem mais casos de pedofilia, a despeito do que se pode acessar na internet ou das revistas e publicações que podem ser livremente adquiridas nas bancas de jornal. E não podemos dizer que isso seja uma prerrogativa do Terceiro Mundo, onde são brutais as diferença entre os que nada têm e os que têm (muito). Volta e meia, em países avançados, um cara entra num supermercado e atira em várias pessoas ou sai pelas salas de aula de uma universidade matando um monte de alunos, num assassinato coletivo que acontece com certa freqüência, por exemplo, nos USA.

Não há, em princípio, efeito sem causa, desde que deixemos quietinhas aqui questões como a metafísica, o imponderável ou o sobrenatural (quer de Almeida ou de Juvenal).

Sem querer descobrir a agulha no palheiro, ou dizer aquilo que muitos já devem ter dito, ouso imaginar que a educação de uma pessoa tenha a capacidade de impedir que ela se encontre um dia numa situação de desconforto tão trágico que possa envolver, com a sua participação, a finalidade da vida de um semelhante.

Há que se investir no ser humano. Ensiná-lo a pensar. Ou melhor, favorecer o desenvolvimento do espírito crítico que já existe dentro de cada um. Evitar que os inumeráveis e danados dos clichês que passaram pra gente tenham que necessariamente nortear as nossas vidas.

“E que vocês fiquem juntos até que a morte os separe”. Há maior sacanagem que isso, que muitos garotos e garotas de 23 anos ou menos tiveram de escutar no altar no dia do seu casamento? Se tiverem que ficar juntos até à morte, vivendo um intenso e saudável amor, como o que estiverem vivendo a partir de quando se conheceram – maravilha. Mas isso tem a obrigatoriedade de acontecer?

Todos os axiomas devem ser, em princípio, questionados. Uma vez aceitos por nós, devidamente esclarecidos, aí sim, devemos considerá-los e segui-los. Não nos descuidando do fato de que eles poderão ser reformulados ou até excluídos num futuro próximo ou distante.

Deveríamos, diante de uma “verdade”, tentar descobrir porque ela é verdadeira. Mas isso desde pequenininhos. Aulas de sexo, trânsito, e informações sobre o consumo de drogas já deveriam ser ministradas desde o ensino fundamental. Claro que em níveis compatíveis com a faixa etária do alunado. A idéia seria a de colocar sobre uma mesa um monte de pedras e deixar que a pessoa escolhesse aquelas que não tivessem efeito nocivo algum, se atiradas contra um outro objeto, uma outra pessoa ou contra si mesmo. Devendo o aluno ser capaz de ele mesmo reconhecer que até mesmo as pedras boas não devem ser atiradas contra ninguém.

Regras, só as que caracterizam o gênero feminino, as menstruais. O que demonstra a capacidade que tem a Natureza de poder nos ensinar. E a nossa, de não querer aprender. Já vimos que não adiantam os dispositivos eletrônicos como prevenção para os acidentes de tráfego, a menos que o objetivo seja o de aumentar a arrecadação municipal, estadual ou federal. Os acidentes e mortes continuam acontecendo. Porque as pessoas continuam correndo muito, sobretudo em situações desfavoráveis, isto é, quando com sono ou após terem ingerido bebidas alcoólicas. Acontecem muitos acidentes também pelo excessivo números de veículos nas ruas. O que é, aí sim, uma prerrogativa do Brasil, que não possui um sistema de transporte que privilegie o deslocamento de massas. O que poderia levar as pessoas a deixarem seus carros em casa.

Já vimos que não adiantam as punições previstas na legislação penal contra os crimes de natureza sexual cometidos contra crianças inocentes, se eles acontecem até mesmo em meio a instituições religiosas, em princípio, acima de qualquer suspeita. Em muitos casos havendo inclusive a tentativa, normalmente bem sucedida, de encobri-los, para a garantia aos olhos do público do rigor moral da instituição.

É claro que devem existir legislações ou códigos prevendo medidas punitivas para quaisquer tipos de distorções ou crimes contra os seres humanos. Assim como contra os seres não menos importantes, mas diferentes de nós pela capacidade que, para a felicidade deles, eles não dispõem. No entanto, fica também claro que mais importante que um conjunto de normas, cujo objetivo de regular a nossa conduta geral é sempre falho e às vezes até inatingível, mais importante que isso é o indivíduo ser levado a reconhecer os motivos pelos quais não deve provocar situações que acabarão por colocá-lo contra si mesmo. Numa condição adversa ao seu equilíbrio espiritual e até mental, muito antes de atingir ou prejudicar o seu semelhante.

Rio, 10/11/2008

Aluizio Rezende
Enviado por Aluizio Rezende em 10/11/2008
Reeditado em 10/03/2009
Código do texto: T1275429
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