O JUIZ


Minha filha me acorda dizendo que ficou pronto o espelho na entrada do hall do apartamento novo, alugado lá na Barra, no qual pode acrescentar benfeitorias que pertencerão ao imóvel, e que serão descontadas no aluguel até R$ 600,00/mês, com a condição de ela usar estas instalações enquanto morar, mas deixá-las como pertencentes ao imóvel, quando de lá sair. O espelho cobre uma parede de alto a baixo na entrada, duplicando o hall, vai ficar lindo.
Mas, diz ela, não ficou bem ajustado na superfície da parede por que a parede feita é desigual na diagonal e tal defeito é imperceptível. Vem o cara assentar o espelho que já medira a parede a ser espelhada semana passada, e quando coloca o espelho, este não se ajusta perfeitamente, ficando evidente a diferença da superfície, mas que o espelho foi cortado certo e coloca assim mesmo com a permissão aborrecida dela, porque a beleza esperada ficou imperfeita, dado que fica um desvão a mostra, diz que é pouca coisa, mas não ficou perfeito como gosta. E, além disso, a janela da cozinha veio com uma dimensão menor e precisou completar com um acréscimo de alumínio para tampar a cantoneira, todo o serviço da mesma montadora, sendo dois rapazes que mediram e assentaram as peças, enfim uma semana e mais outra, perdidas porque ela está lá só nos fins de semana... Aborrecida, pois a culpa dos erros foi meio que perdoado, porque um tinha medido e o outro tinha executado, e por baixo de tudo, a construtora não fizera a parede perfeita... Para um perfeccionista como ela, essas coisas são muito perturbadoras e desconfortáveis.
Enquanto descrevia tudo, lembrei de uma perícia feita numa vila no Jacaré, próxima ao Jacarezinho, famosa favela pela violência e narcotráfico, tratou-se de uma casinha lá no fundo de uma vila da casas geminadas, de bom padrão construtivo com térreo e andar superior, uma pequena comunidade burguesa com suas antenas parabólicas e seus terraços de churrasco de fim de semana. A pequena casa em questão ficava quase despercebida pela sua pequenez e discreta pobreza. Só de perto se percebia o contraste com as demais moradias. Fachada de uma porta e uma janela. Entrei. Logo de cara, quase não podia passar devida a uma pilha imensa de remédios amontoados obstruindo a passagem entre a parede e uma cama de casal e um sofá, mal distinto tão coberto estava de panos, gatos, objetos variados ali jogados.
E um cheiro. Lembro disso, um odor não identificável, mas suportável. Um velho tinha aberto a porta e me fez entrar enquanto eu explicava a minha função ali. Uma porta, mais propriamente uma abertura levava à cozinha meio escura e que dava para uma pequena área aberta e com tanque, varal, montes de coisas inservíveis amontoadas. Dali se via os telhados das casas vizinhas num flagrante contraste de pobreza e de remediados. Pelos menos, ali batia um pedaço de sol e ar. Voltamos, ele indicou o banheiro num canto da cozinha tão pequeno que nem notara na entrada. Fui fotografando tudo, medindo as áreas dos poucos cômodos, com a maior dificuldade de me locomover entre tanto bagulho amontoado ao meio de diversos gatos deitados por toda a parte.
E uma velhinha. Menor que o homenzinho, minguada, rota, os dois explicando que eram pobres, vivia de ajuda de remédios que ganhavam e uma pequena aposentadoria de um deles. A imagem do conjunto tinha cor e tinha sentimento. Tinha alma e humanidade, direitos e deveres, ética e filosofia, o diabo. A princípio, uma imagem difusa, lembrando duendes em filmes de fantasia juvenil de Walt Disney. Eles diziam que não podiam sair dali, viviam ali a vida toda e agora não podiam ir pra lugar nenhum, nem tinham como fazê-lo. E ela sofria disso e daquilo, e ele também não sabiam o que fazer.
Eu não podia fazer nada por eles, mas já estava conquistada pela penúria e indefesa deles e o encanto inusitado de tais criaturas, saídas daquele Tesouro da Juventude de antigamente. Procurei fazer um laudo correto e justo. Fui até outra casa vizinha e pedi licença de subir ao terraço deles para bater fotos do contraste daquelas realidades. Eu era conhecida entre os meus colegas e advogados de perícias, como a “perita do metro quadrado”, pois meus laudos não perdiam nenhum detalhe e, coisa que ninguém sabe tudo que faço e sou é um ato político, o que leva ao trabalho e a qualquer coisa uma maneira de ver filosófica de compreensão do ser humano. Nada prometi, mas voltei pra casa e trabalhei o tempo todo dentro dum sentimento de compromisso daquela gente. Virou um dilema de consciência. Ou seja, uma quase escorregada em torcer por eles tecnicamente. Virou uma questão pessoal e eu não podia falsear o laudo. Não agüentando mais o que fazer, pois parecia que eu estava tentada a fazer justiça e o trabalho é técnico. Procurei o gabinete do Juiz da 23ª Vara Cível, um homem maravilhoso que estava quase em tempo de ser transferido não sabe se para Barra Mansa ou São João da Barra, é imperdoável ter esquecido seu nome, acho que foi o melhor juiz com quem trabalhei.
Era muito bom bater um papinho curto com os juízes perto da hora do almoço e era sempre bem recebida. Claro, uma interrupçãozinha naquele trabalho monótono era um bem pra ambas as partes. Muito amável, convidou-me a assentar e deixou-me a vontade de expor o caso e o meu dilema. Contei tudo, mostrei as fotos, passei uma idéia toda do caso.
Ele, o Juiz, grandão, alto e gordo, olhos redondos, pretos, inteligentes, meia idade... Oh não me perdôo por esquecer, talvez, Dr. João me disse as palavras mais sábias que já ouvi na minha vida:

Minha filha a gente não pode fazer caridade com o bem alheio.

MLUIZAMARTINS