Cocaína na mamadeira
Walter Monteiro
O Delegado estava lendo o mandado de hábeas corpus quando a reportagem chegou. No gabinete havia pouco espaço; pastas espalhadas e, sobre a mesa, pilhas de processos e registros de ocorrências. Ele se levantou, cumprimentou a equipe e se preparou para a entrevista, ajeitando o laço da gravata. O fotógrafo ligou a câmera digital e o jornalista imediatamente perguntou:
- Doutor, a criminosa vai ser solta?
- Calma rapaz... Respondeu o delegado, apontando os fundos da delegacia.
- Lá dentro só têm criminosos e osas, de quem o senhor está falando?
- Da mulher que colocou cocaína na mamadeira da filha!
O delegado coçou a cabeça, lembrou a gafe na entrevista anterior e ponderou:
- Olha só, acho que ainda não é hora para falar sobre isso... Estou aqui com o habeas corpus, mas ainda vou analisar se a solto agora ou não.
- O senhor acha mesmo que ela é uma bandida?
A palavra bandida também não soou bem e por precaução o delegado moderou a resposta.
- Olha só meu amigo, não acho que seja bandida, até porque o
comportamento dela foi muito diferente das delinqüentes que conheço...
Enquanto o delegado falava o inspetor entreabriu a porta e perguntou:
- Doutor pode mandar o advogado entrar?
- Agora não! Franziu a testa e com o olhar crítico, concluiu: - Mas você parece que não raciocina... Não está vendo que estou no meio da entrevista?
Cheio de amabilidade, o delegado voltou a falar com o repórter:
- Mas do que estávamos falando?
Da bandida doutor, ela vai ser solta ou não?
- A sim! Claro que vai... Mas primeiro quero olhá-la mais uma vez, sentir seu perfil e se ainda perceber algo estranho, a deixo mofar mais um pouco na cadeia.
O jornalista achou interessante o método empírico de observação e perguntou:
- Mas doutor, qual o critério de avaliação o senhor usa nesses casos?
- Observação pura e simples – e explicou - Bato os olhos e pronto, meu banco de dados aqui da cachola me dá logo o estereótipo do indivíduo.
O delegado se levantou, foi até o painel na parede, retirou uma foto onde aparecia ao lado de outros policiais e a exibiu:
- Olha aqui meu filho... São anos de experiência... Sou da época da ditadura, aprendi com o Borges, Borer, turma antiga e boa na psicologia criminal. Naquela época, com um simples olhar a gente sabia quem era comunista, bandido, pungüista, prostituta e toda escória da sociedade.
O jornalista, diante daquela preciosidade, arriscou uma pergunta antológica:
- Doutor, o senhor é da época em que se dizia que o negro quando não “caga” na entrada, “caga” na saída?
O delegado esboçou um leve sorriso, foi até a porta e a trancou:
- Olha só filho... Vou dizer uma coisa, mas não publica não! Esse negócio de “preto” é muito complicado, hoje com essa balela de direitos humanos veio piorar a relação de polícia e bandido. Atualmente o policial leva tapa na cara e depois morre... Na minha época a gente passava corda no pescoço desses “negrinhos” e carregava que nem escravo fujão, depois “porrada” neles, só assim respeitavam.
Como o assunto fugia o objetivo da reportagem, o jornalista resolveu encerrar:
- Mas voltando ao caso da mãe assassina: aquela observação do choro, quando disse ser diferente de uma mãe normal, está correta?
- Quase correta, nem tudo a gente acerta, mas ainda tenho esperança de que a perícia esteja enganada; para mim ela é safada mesmo e quis matar a criança com cocaína!
- Mas doutor, se ela quisesse matar mesmo, o senhor não acha que ela usaria um produto mais barato, tipo chumbinho, porque logo cocaína?
O delegado, com o olhar distante e na sua sabedoria profissional, concluiu:
- No meu entender, filho... A mãe não queria sentir culpa, sabia que com a cocaína a filha morreria numa boa, alegre, feliz e quem sabe iria pro céu! Sabe como é essa gente maluca!
Satisfeito, o jornalista encerrou a entrevista e mandou o fotógrafo tirar algumas fotos. O delegado ajeitou o cabelo, fingiu escrever e esboçou um leve sorriso, para a manchete do dia seguinte:
PARA DELEGADO, CRIANÇA MORREU FELIZ!