REVOLUÇÃO SILENCIOSA
Ela guardava todos os seus escarros num pote de vidro, após um período negro de pneumonia. Lenços de assoar repletos de matérias amareladas e espessas, como exóticos suvenires. Todos julgavam aquilo digno de desprezo. Como podia uma pessoa em sã consciência engavetar sua própria doença?
Ela também guardava escorpiões dentro de uma caixa. Morava numa região onde a pobreza era exacerbada, um córrego podre era seu visinho, lixo em demasia flutuava em suas águas pardacentas. Esses pequenos aracnídeos surgiam em grande quantidade, interessados em toda aquela podridão humana. A mulher tratava de alimentá-los diariamente, pois os pequenos bastardos acabavam cometendo canibalismo quando famintos.
Ninguém entendia a conduta da mulher anônima. Passara dois meses com pneumonia, e nesse período acumulou centenas de lenços maculados com muco amarelado e dezenas de escorpiões em duas caixas. Alguns achavam que a inanição a estaria deixando louca.
Ao lado da favela pútrida onde residia havia um enorme residencial. Muitos homens moravam naquele lugar. Tinham conforto, comida quente todos os dias, quartos individuais e mulheres. Tudo pago pelo governo. Era uma classe beneficiada. A mulher odiava-os. Odiava-os ao ponto de flagrava-se chorando de frustração quando, para poder sobreviver, explorava os restos de comidas que esses homens deixavam diariamente.
Certa noite, cansada da humilhação, ela caminhou a passos lentos até os portões da edificação de luxo dos homens beneficiados. A tiracolo havia dois potes com escarros ressequidos e a caixa de escorpiões cultivados. A mulher sorria diante da atitude que perpetraria aquela noite.
Ao chegar ao portão da edificação de luxo, a mulher ajoelhou-se e retirou os pertences do interior da bolsa. Os escorpiões moviam-se irrequietos. Ela abriu os potes com seu escarro e soltou-os ao sabor do vento. Este, que estava ao seu lado, conduziu-os pelo pátio da edificação. Centenas de pequeninos fantasmas brancos singrando o ar, cada um carregando em si outras centenas de bactérias inquietas. Bactérias que também voariam livres com o vento e alojar-se-iam no pulmão dos desgraçados do residencial.
A mulher ajoelhou-se novamente e libertou os escorpiões no interior do pátio. Os bastardinhos caminharam famintos, rumo ao edificio. Eram dezenas e se camuflavam com a cor do chão. Infeliz daquele que não olhasse onde pisava.
Observando os fantasmas de lenço branco e os escorpiões, a mulher precisou conter o riso. Como era doce a vingança. Não era justo ela viver como um rato enquanto aqueles homens imundos tinham todo o conforto pago pelo governo. A mulher, às vezes, perdia a vontade de continuar vivendo quando pensava demais na situação: Pagava luz, água, IPTU, e toda bela porcaria. Aqueles homens não pagavam nada e ainda tinham uma vida cheia de mordomias.
Mastigando as injustiças da vida, mas ainda sorrindo, ela deu as costas ao Centro de Detenção e voltou para casa.