O MENINO E O ADVOGADO

O MENINO E O ADVOGADO

Era manhã de domingo, mês de agosto.

O Dr. Júlio fazia sua caminhada costumeira pelas alamedas do parque municipal, sob árvores frondosas e de frescas sombras.

O Dr. Júlio era advogado. Dos bons. Não perdia causa.

Após seus exercícios, sentou sobre a relva - alcoviteira da santa molúria de todos os dias – e jogou seu corpo cansado ao chão por alguns instantes. Logo se pôs de pé, pegou sua skuez do São Paulo, seu time do coração, e molhou todo o rosto, sentindo o sal arder-lhe os lábios secos, quando em cachoeira, seu suor descambou junto com a água que precipitava pelas suas faces. Depois tirou o tênis, colocou seu velho e companheiro chinelo Rider nos seus pés pálidos, retirou da bolsa uma barrinha de cereal e seguiu triturando-a rumo à saída que dava no estacionamento.

Ao passar pelo playground, viu um menino sentado no banco, sozinho, com uma lata vazia de Nescau presa aos pés. A lata parecia o novelo de lã da vovó de tanta linha que nela tinha enrolada. Logo se pode notar: era um soltador de pipas. Aproximou-o:

- Oi garoto, tudo bem? – sentando ao lado do guri.

- Tudo.

- Soltando pipa? - olhando para a lata.

- Tava. – com os olhos esticados para o céu - atentos como os olhos de uma águia mirando a lebre distraída – observando alguns pipas que disputavam cada palmo, fazendo dos ares uma verdadeira arena.

- Por que não está mais?

- Tomei um relo.

- Sério?

- É... Meu cerol tava no bico.

- Que pena em? – começa acompanhar o bailar das pipas com o menino. Você estuda? – perguntou sem tirar os olhos do alto.

- Sim.

- Está em qual série?

- Quarta.

- Quem bom! – mergulha noutro silêncio junto com o menino. Começa a se empolgar. Vai meu! Dá linha, dá linha... Isso! Foi por pouco em?

- Aquele cara é um cabeção. Vive tomando relo. - Ironizou o nosso pequeno especialista na arte de empinar pipas.

- Qual a matéria que você mais gosta?

- Matemática.

- Isso é bom. Muito legal. Matemática é uma matéria muito difícil. – ambos continuam com os olhos fixos nas pipas sem se darem o mínimo luxo nem de piscar; isso seria correr um sério risco de perder um lance legal lá em cima. O Dr. Júlio continuou: quer uma bala?

- Quero.

- Escuta garoto, o que você quer ser quando crescer?

- Jogador de futebol.

- Legal! Isso é legal. Espero que você seja um bom artilheiro.

- Brigado.

- Sabe, quando eu era garoto, eu também tinha muita vontade de ser um jogador de futebol.

- E o senhor conseguiu?

- Não, não foi possível.

- Por quê?

- Acho que eu não levava muito jeito pra coisa, entende?

Com um risinho sarcástico nos lábios: - o senhor era um perna de pau, né?

- Pior que isso.

- Caramba! Se o senhor era pior do que o pior, o que o senhor era?

Naquele momento o Dr. Júlio, um homem culto, inteligente, de raciocínio veloz, acostumado com perguntas e situações nos tribunais a fora, que o obrigava a traçar saídas de emergência em velocidade mil vezes a da luz, se viu em xeque, numa sinuca de bico. Ficou sem palavras. Processou, processou... E não encontrando escape, usou o velho truque: começou a rir, rir... Completando: - gostei dessa, garoto! Excelente! Muito boa! – o menino olhou para ele bem sério. Seus olhos pareciam duas flechas na carne do Dr. Júlio que logo se silenciou.

Foi um olhar de total reprovação, um olhar de “eu em”.

- Desculpe! – balbuciou Dr. Júlio todo escabreado.

- Já que o senhor não virou jogador, o que senhor virou?

- Me tornei um advogado.

- Ah! E isso é legal?

- Eu gosto. É muito gratificante.

- O que um advogado faz?

- Um advogado defende as pessoas.

- Defende? Defende de quê?

- De outras pessoas.

- Igual à polícia?

- Digamos que sim.

- O senhor também usa farda?

- Uso; só que a minha é diferente.

- Diferente? Então como é?

- Eu uso paletó, calça social, gravata...

A essa altura o menino já estava mais interessado no assunto. Embora ainda olhasse para as pipas, estava prestando atenção na conversa e se olham quando conversavam.

- Então isso é ser advogado?

- Mais ou menos... Quer dizer precisa de mais um montão de coisas.

- Sendo assim eu acho que também vou ser advogado quando eu crescer.

- Sério? Que bacana, meu rapaz! – exclamou o Dr. Júlio bem surpreso.

- É, eu achei legal esse negócio aí de advogado. Acho que é bem legal.

- Só que existem várias categorias de advogados, assim como existem várias categorias de jogador de futebol: tem lateral, goleiro, zagueiro... Mas todos são jogadores. Da mesma forma é com os advogados: tem advogado trabalhista, criminal...

- Criminal? O que é advogado criminal? Ele faz crime?

- Não... Deixa eu te explicar... É mais ou menos assim: dois homens brigam; aí um fica muito nervoso e pá!... Mata o outro. O que matou vai lá pra cadeia ficar preso. Só que apesar de tudo ele tem alguns direitos; aí o advogado criminal o defende para que ele não fique a vida toda na cadeia. – O garoto olhava para o Dr. Júlio concentradíssimo. O Dr. Júlio continuou: - outro exemplo para você entender melhor: uma pessoa entra no supermercado e ó... Rouba um pacote de biscoito. O que acontece com ela?

- Vai presa!

- Isso... Muito bem; vai presa. Só que ela também tem alguns direitos; aí o advogado criminal vai e defende ela também. Entendeu?

- Entendi. – Dar uma olhadinha nos pipas e se volta. – E como faz pra ser advogado? É só comprar o paletó?

- Não; precisa estudar muito, muito mesmo – com um sorriso no rosto mediante a inocência do menino.

- E tem que estudar o que?

- Um montão de livro assim: - mostra a espessura do livro formando um colchete com os dedos polegar e indicador – bem grossos. E são vários anos estudando.

- Caramba! E tem muita figurinha nos livros?

- Pior que não; só tem letrinhas bem pequenas.

- Aiii! Caramba! – faz uma pausa, olha as pipas e depois se volta para o assunto. – E qual é o nome da matéria que agente estuda pra ser advogado?

- Ah, sim; o nome da matéria é Direito. Pra ser um advogado tem que estudar Direito.

O garoto olhou assim pra ele meio decepcionado, olhou, olhou, pensou e com uma baita interrogação cravada no rosto, mente e olhos, continuou: - E é?

- É.

- Quer dizer então que pra ser advogado eu tenho que estudar DIREITO um montão de anos assim... Ler um montão de livros assim... – e sem figurinhas – E depois que eu estudar bastante Direito e eu for um advogado aí eu vou defender as pessoas tortas?! – faz uma pequena pausa – Humm... Tô fora! Tchau tio! – E saiu correndo com a molecada atrás de uma pipa que havia sido mandada!

luznaentradadotunel
Enviado por luznaentradadotunel em 09/11/2008
Reeditado em 11/11/2008
Código do texto: T1274008
Classificação de conteúdo: seguro