A pétala do silêncio
Há bastante tempo disseram que estavas doente. Dizem que teu sorriso, sempre ao lado dos justos, desapareceu. Custo a crer. O teu abraço sincero, sempre que nos víamos, guardava a simplicidade da geração de amigos, cujo rosto é a cidade. Como nos vimos no verão e cantamos, revivemos situações com outros camaradas, a próxima estação, ficará como exemplo da saudade irremediável.
Vejo-te entrando no céu sem pedir licença. Sorrindo da ironia sem perder a gentileza. Dona Clarice, Seu Hamilton, Maria, todos dobrados em contido pranto. Nunca esmoreceram quanto aos princípios. A doença manteve a modéstia elegante da noite no porte afetivo. Sabes que o meu pranto é seco. Enlutado pelas cores sem despedidas ao gosto do difícil hedonismo. Tudo mantido na pétala do silêncio.
É distante que recebo o aviso e construo o meu perdão calado pela ausência. Desenrola-se em mim um filme inteiro em busca de remissão apenas por estar longe. Uma película feliz onde perdura a frágil ocorrência das cenas abrigando antigos cinemas, cafés, além dos recantos não especializados da vida.
Com um pano cobrindo a face, passamos para dizer que estivéramos e que não mais estamos. De que partimos em viagem. Iludimo-nos para tanto, e assim nos eternizamos em discos, canções, noitadas. Tu dirias “não” sobre os enganos com a versão atualizada dos temas modificados. Nessa hora de angústia ocorrem movimentos na rua. Tentativa de assalto, um guarda, um cliente que chega assustado. Pelo noticiário a crueldade parece não ter fim. Nada que se passa lá fora vejo. Sinto e escrevo a teatral fuga agora que estais livre no espaço. Nesse abstrato toque de ubiquidade, amiga, eternizada que se reúne na totalidade. Fica um vazio na porta que se abre para sempre. Você mudou e nos tornamos mais presentes.