Koé tio

Walter Monteiro

Juliana estava deitada no sofá toda encolhida, as pernas dobradas e os joelhos encostados nos ombros. Uma posição defensiva de quem não quer papo com o mundo. Passei por ela devagarzinho e sentei no sofá à sua frente. O ambiente estava tenso e só na cozinha se ouvia um leve ruído. Fiquei olhando-a em silêncio e quando percebi seus olhos úmidos, perguntei:

- Ta chorando por quê?

Juliana não respondeu, apenas esticou as pernas e cruzou os braços sobre o peito, com o beiço estufado de zanga.

Sua mãe largou a panela no fogo e veio ficar em pé na soleira da porta, olhando para ela.

- Não liga não patrão...Isso é pirraça dela!

- Mentira! – Disse a jovem enxugando as lágrimas – Ela fica me batendo porque diz que falo errado!

Achei a discussão estranha e indaguei:

- Você fala errado, como?

- É que a professora diz que o certo é falar “polícia” e minha mãe me bate e diz que é “poliça”.

Olhei sua mãe espantado e ela, disfarçando um sorriso amarelo, falou:

- Aaaah, foi assim que aprendi e essas crianças “fala” tudo “diferenti”.

Levei dona Denise de volta à cozinha e expliquei-lhe que o filho ao ir a escola aprende o correto e não é desrespeito quando corrige os pais, até porque os antigos ensinavam errado. Com o conflito resolvido, ela se sentiu conformada, tanto que dias depois, ao saborear sua comida, eu disse brincando:

- Hummm essa comida tá uma deliça...

Ela sorriu e respondeu:

A tá... Pensa que não sei que é de-lí-ci-aaaa!

Esse fato me deu certeza de que os filhos de Dona Denise são milhões, espalhados pelos orkutes da vida, desinibidos e satisfeitos pela nova linguagem periférica. Uma alquimia do “não sei nada”, misturado com aquilo que você “também não sabe” e todos devotos da milagrosa “santa ignorância”.

Foi pensando sobre isso que encontrei o filho de um conhecido, do morro do amor.

- Koé dotô! Disse se balançando todo e estendendo a mão em minha direção..

- Não entendi... Respondi, sacudindo sua mão – Ta me confundindo com o Coén?

- ki coén dotô... Nem sei quem é essa peça!

- Como não sabe? Coén é um herói da literatura de Maricá, preso em 64, depois de enfrentar os militares a tiro, dentro da barbearia do pai. Só não morreu porque nada disso foi verdade.

- Tá bom dotô, mas apenas quis dizer koé, como um cumprimento simples e “rasteiro”.

Ele se afastou decepcionado e um pouco adiante parou, olhou para trás e falou:

- Aí dotô, se recicla no orkut e vai entender a gente melhor!

Segui seu conselho e entrei no Orkut da filha da empregada, onde encontrei um novo vocabulário idiota, tipo: quanto mais burro melhor.

Comecei a ler os recados dos jovens e verifiquei a formação de um dialeto, sem preocupação com a linguagem culta, formam palavras com qualquer letra, desde que seja entendido.

Descobri que o “Koé” do jovem, era “qual é”, da minha geração; “miguxa” é amiga; “pow” é poxa; “naum” é não; “adolu” é adoro; “condo” é quando; toda essa invenção disfarça o “peço” que a “miguxa” escreveu com dois “ésses” e aceito sem crítica, até porque ninguém sabe o certo mesmo!

Quando voltei a encontrar o jovem “koé” e disse-lhe para estudar, ele me respondeu:

- Koé tio...Estudá pra quê?... Sou ambicioso...to a fim de ser presidente da República!

walter monteiro
Enviado por walter monteiro em 08/11/2008
Código do texto: T1272243
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