Saudosa Cartilha

   Pego-me a refletir o motivo de tanta nostalgia, às vezes penso que sou bobo. Lembranças me fazem sorrir, falar sozinho, chorar. Dia desses, vinha dirigindo na Marginal Pinheiros, conversando comigo e me emocionava em cada frase que dizia. Parecia louco. Vibrando. Falava em voz alta, sentindo os pêlos dos meus braços arrepiarem-se, os olhos umedecerem e ao olhar para o lado, observei uma senhora que me fitava intrigada. Um olhar de compaixão. Misericordioso. Daqueles que por si só dizem coitadinho, tão novo e com distúrbios neurológicos. Até pode ser. Mas eu não estava nem aí, aquela deliciosa sensação de estar vivo fazia-me balbuciar cada vez mais. Só eu sentia.

   Outro dia assisti um filme, certa altura começou a dar nó na garganta e caí em prantos. Tentei disfarçar. Acho que minha mulher percebeu. Pior é ter que mostrar que sou durão. Bobagem. Machismo dissimulado. Sou assim. Assim serei. Eterno emocionado.

   Talvez por ter vivido no finalzinho dos tempos onde se tinha respeito aos mais velhos. Na escola morríamos de medo da diretora e havia castigo aos que saíssem fora da linha. Antes de entrar no colégio cantávamos “Ave Maria” e o “Hino Nacional”. Levei muitos puxões de orelha da professora, por brigar em sala de aula ou responder-lhe algo atravessado.

   Ontem ouvi meu filhinho de quatro anos cantando “dança da motinha”. Pensei em repreender-lhe, mas logo percebi que seria em vão. A televisão entrou em nossos lares como um magazine repleto de ofertas, hábitos, modismos, caracterizações, estereótipos, etc e coisa e tal. Ensinando-nos a falar, comprar, comer, transar, casar, descasar, trair, mentir, iludir, matar, roubar, vestir...

   Lá na casa de mamãe tivemos nossa primeira TV quando eu já tinha uns oito anos. Outro dia meu filho pediu-me um iphone de presente de aniversário e quer ir ao Mac Donald. Sorri e disse que se ele for um bom menino e se comportar iria lhe presentear.

   Em minha nostalgia profunda, sinto falta de ciranda cirandinha, atirei o pau no gato, circo pegou fogo... Como dizia o rei, “tenho às vezes vontade de ser novamente um menino”. Hoje é fogo na bomba. Rapp, raggae, funk, axé, music. Tatoo. Piercing. Rave. Se papai tivesse vivo diria que isso é coisa de fresco.

   Sempre gostei de ler. Parte de meus brinquedos foram livros. Drummond. Assis. Lobato. Veríssimo. Rêgo. Vasconcelos. Meireles. Desculpem-me outros. Todos foram meus amigos e me ensinaram a enxergar um mundo bem diferente ao da TV. Um mundo com sabor e desejo. Fantástico e inusitado. Da curiosidade hipnótica e irreal. Buscando a compreensão de um vocábulo místico e eletrizante.

   Pensando bem, vou presentear-lhe com aquilo que seja o desejo de seu coração e esteja ao meu alcance, mas não vou deixar de lhe dar um presente que possa marcar toda sua trajetória de vida. Ensinar-lhe a ter emoção com pequenas coisas e valorizar cada fôlego de vida. Comprarei uma pequena cartilha que lhe ensine o b-a-bá e, talvez, lá no futuro ela possa trazer a lembrança de seu velho papai. Caminho Suave.
Sidrônio Moraes
Enviado por Sidrônio Moraes em 07/11/2008
Reeditado em 30/03/2009
Código do texto: T1271697
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