" (...) Não há razão para se
existir com fome,
tampouco sem fome.
Você tem fome de quê?, perguntava uma letra de rock. De paixão, responde a maioria. Há milhares de casais que se amam e não compreendem a razão de seguirem insatisfeitos, já que a vida lhes foi tão generosa. Falta-lhes paixão, que é coisa bem diferente de amor.
Paixão mantém a falta de gravidade do corpo, os pés longe do chão, a vida de ponta-cabeça, prazer e vertigem, o sim e o não convivendo no mesmo espaço de tempo. Paixão: a causa de tantos desacertos comemorados com champanhe, depois das lágrimas. Paixão é uma fome hemorrágica de sangue e coração!
E há a fome de vida, que é mais aguda. Além de incorporar a fome de paixão, inclui a fome contraditória de liberdade, e também a fome de conhecimento, a fome de êxtase, a fome de sol. Uma pessoa que atingiu a plena saciedade, não percebe que jaz em cima da terra, ainda que se mantenha como um zumbi caminhando sobre ela. Morre-se de fome, mas também morre-se por não ter fome.
A fome é mais violenta que o desejo. Este é aliado à vontade, é uma intenção que mistura o emocional com o racional, já que a gente deseja com o cérebro também! A fome, ao contrário, não pensa. Não dialoga, não negocia. É instintiva, febril. A fome é um grito de "eu quero", "eu preciso", sem levar em consideração tudo que está ao redor. A fome nos expulsa da sociedade, nos desloca de toda civilização e nos isenta de todos os pecados!
A luta por esse tipo de sobrevivência nos redime de qualquer culpa e de qualquer racionalidade.(...)
Olho para os lados e vejo pessoas atracadas em pratos de macarrão, sem fome alguma. devorando carnes, bolos, sem que a vida lhes pareça igualmente suculenta. Não vão morrer de fome de comida, mas alguns correm o risco de morrer de tanto vazio."
Martha Medeiros
Revista O Globo
Editoria Ela disse, 12.10.2008
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