Na linha de espera
À
C. F.
Seria pai afetivo, nunca burocrático neste processo de adoção. Havia sido cômico, pois estava centrado na idéia diante da mais fria senhora de olhos analíticos. Dorinha lhe preveniu para que se referisse a ela apenas como “senhora carismática”. Havia observado a frieza técnica como um carimbo fixado no papel exato. Preenchido o formulário por si só resumia a volumosa crônica sobre adoção consciente. A intimação marcava data e hora para o bate-papo informal no calvário de papel forense. Só assim prosseguiria o processo na linha de espera. A digníssima Assistente Social do fórum da comarca de Galo era de fato uma mulher rígida e arcana. Aquele homem de pequena estatura de nome Albuquerque Azeredo, tipo popular, franciscano nos hábitos, poderia dividir o seu bife. Poderia até transferir uma educação exemplar ao agregado. Sua educação de livros e sua estação de justas núpcias, sem papéis, sem testemunhas falariam contra a decisão? Há tanto preconceito contra as escolhas da liberdade.
Dorinha ocupou-se em clarificar de sentido a frase de Albuquerque sobre “pai afetivo, nunca burocrático” da melhor maneira que pode. Desejava minorar o sofrimento da orfandade e era só. Estavam de acordo, mas o processo seria por sua conta e risco. Ela mesma havia sido adotada com mimos desde a tenra idade. O pobre do Albuquerque vivia enrolado numa dívida que o prendia com garras desconhecidas. O endividamento, único de sua vida, o tornou um tipo quieto e evasivo. Temia ser confundido com lances de corrupção das notícias sobre grandes desfalques tão abundantes na imprensa da hora. O primeiro negócio mal empreendido fizera silenciar um otimista em pleno onirismo da sua vida. Havia recusado a condição de “mesário” numa eleição na comarca, pois não era digno de elogios, encalacrado como andava. Mesmo assim encarnava retidão física no terno enxovalhado do dia.
De fato o escrivão cruzou a porta com a polícia levantando os bens que ainda restavam do negócio fiduciário. Curto e certo como um machado corta uma árvore o elixir dos números transformou-se no implacável veneno. Com o tempo firmou-se como vendedor de enciclopédia atravessando um caminho difícil. Dorinha sempre ao seu lado em tudo. Voltou aos estudos tornando-se Bacharel em Contabilidade, mas sem numerário. Quando perceberam no espelho do tempo haviam separado do amor apenas o próprio alimento.
- O senhor quer adotar?
- Sim.
- Deveria ter preenchido o formulário.
- Dorinha está em melhores condições do que eu para papéis...
- Não estou entendendo. Vivemos na burocracia. Pense no futuro. Na solicitação de guarda...
- No futuro haverá uma nova determinação. Pode me dizer o número de órfãos que estão esperando papéis e carimbos? Quer que assine? A senhora quer que eu assine? Diga onde...
- Quero que o senhor se retire. Disse a Assistente Social utilizando todo o poder pessoal.
Albuquerque então saiu democrata, assisado, dizendo:
- Não sei se a senhora está sendo simplista ou complexa demais...
Pouco depois desse estranho diálogo que marcaria toda uma existência perdida no corredor do fórum surgia uma doméstica com um bebê. Ficou paralisado por Dorinha. Justamente no horário combinado para a entrevista sobre adoção dois corações bateram (duas mudas e silenciosas faces de estrelas) num instante de duvida. Já no final do expediente forense os funcionários começaram a festejar o infante como Reis Magos. Era a filha do Desembargador Pederneiras.