Olhos de oratório
Há se dito que objetos, perfumes, músicas e outras coisas possuem o poder mágico de nos transportar a épocas pretéritas de nossa existência.
Durante o repouso de férias e os entretenimentos o coração se abre em portas largas de sensibilidade, apreendendo, com ou outros esquemas, os estímulos do cotidiano. Ao contrário, em períodos de intensa atividade, nossa alma fecha-se ao aceano de exuberâncias que a realidade carrega veladamente. Cegos, só enxergamos as aparências; coxos, não alcançamos a essência imutável dos entes que correm na nossa dianteira.
Num desses dias em que me ocupava tão somente em não ter ocupações, visitei a humílima casa de um campônio nas cercanias da cidade que me tinha como hóspede. Quase uma choupana, teimando em ser casa, aquela edificação. Em seu interior, contudo, deparei-me com um oratório repleto de imagens de santos. Aquela visão ofuscou-me por inteiro. Ela acendia, no altar das minhas vivências infantis, a chama da recordação de outros tempos. O nicho pobre e sertanejo saciou abundantemente a fome de olhos ressequidos com a aridez do presente e fartou-me das visões do menino de ontem.
Aquele santo, com olhos tão ternamente fitos no céu, pareciam tornar a mim como nas noites medrosas de chuva forte. E nossa senhora das graças nada mudou: conservava as mesmas vestes que um dia comparei às de minha avó. Não ouvi, agora, os risos que escutei então; por aquela idade minhas palavras soavam com graça.
Procurei , aturdido, a pureza singela que caracterizava tão fortemente aqueles olhos celestiais nas minhas impressões de menino. Não a achei! Busquei-a com mais intensidade. Os esforços , contudo, não recompensaram o fervor da inquietação. Os antos e anjos haveriam decaído de seus estados? Corrompera-se, porventura, a substância santificante ?
Serenada a angústia, compreendi, quem afinal, mudara. Não ! Os santos não mudaram. Deixemo-los imutáveis onde estão. Não cometeram pecado. Foram as décadas, com os reveses e desencontros , que atiraram em meus olhos o glaucoma dos vícios, impedindo-me de ver com simplicidade e a pureza daqueles tempos. Os olhos de oratório deixaram-me com a chegada dos primeiros arroubos de mundanismo e, debalde, os procurei.