A MULHER DE EL CID
Quando o vejo disparado pelo campo aberto, morto, mostrando a sua aparente grandeza, eu começo a acordar, a despertar dum sono cultural, familiar e social.
Eu.
Porque estive com este homem e vivi a sua vida que não a minha? Porque trajo estas roupas que não me dizem nada de mim mesma? Estas vestes longas e medievais? Porque tomei conta deste castelo e destas terras e posses? Porque me senti responsável por tudo isso que não é meu? E que nem nada disso me interessa? Porque cuidei da criadagem e da ordem de coisas de um tempo que não é o meu e eu nada tenho com isso? Porque a preocupação cotidiana de manter a prataria brilhando e fazendo banquetes fenomenais com os melhores vinhos e a melhor comida aos comensais?
Porque ninguém notou a minha trabalheira e a delicadeza de todos os sabores requintados que ofereci e fiz? Porque me ignoraram como se eu fosse um ato de magia paralela? Porque isso nunca me importou?
Porque todos só viram em mim o que queriam ver em suas próprias limitações e necessidades que assim fosse? Ignorada, usada como um apêndice sem boca e sem fala, sem desejo e sonhos, sem inteligência e sem conhecimentos de toda uma biblioteca secular. Desenvolvida na sensibilidade e na percepção da vida, nos valores humanos, naturais e éticos, desenvolvida na arte até a completa liberdade de ser e viver. Livre para sonhar. E livre para não precisar mais dos sonhos, das realizações outrora pretendidas. Livre e desprendida de todos e de tudo.
Abro os portões deste castelo e deste tempo, escancaro as portas para dar passagem ao meu corpo e minha mente que é uma tão grande bagagem que a largura é pouca para uma saída mais plena e livre de qualquer outra coisa que não eu mesma. Arranco as roupagens que me cobrem e que pertencem a este tempo e espaço às minhas costas. Deixo o vento entrar pelos portões passando célere por minhas pernas nuas e volteando os meus cabelos e, após, invadindo cada rincão de coisa e de lugar que fica para trás e dentro deste mundo que não existe e nem significa.
Saio.
Nua e desprendida. Nada levo. Nada deixo.
Eu quero a poeira do deserto. Eu quero o sol nascendo no horizonte das dunas. Pode ser lindo e alimento para a alma. É desafio enfrentar as areias escaldantes do meio dia. Meus pés pisarão a areia escorregadia entre os dedos, prazerosamente. Se cansar, deito um pouco. Se a pele queimar, cavo com as mãos um buraco e me cubro com a areia até o cair da noite, que aguardarei com um desejo novo. Desejo da beleza de um céu estrelado até onde a vista alcançar. Encontrarei passantes, homens e mulheres, bichos, oásis, mesmo que demore, pois este mundo é uma aldeia. Cada dia é um dia novo. O novo é bem-vindo e bom.
A liberdade. O sabor do novo e do desconhecido. Uma mudança boa, afinal.
Porque uma indefinida tristeza ainda?
MLUIZA MARTINS