Antes da Quaresma há o Carnaval...
Por Poet Ha, Abilio Machado.
Muito já se foi dito, muito por tanto tempo, me perdi no meio das Ambrósias, no labirinto daquele jardim magnífico. Não queria mais a folia, as festas pagãs foram absorvidas pelo cristianismo, as festas regadas a tudo, aos trejeitos das eras, aos anseios de tantos que esperavam para ver-se num novo simbolismo que não aquele que era, que foi... Agora homens se escondem sob máscaras para esconderem suas vergonhas, seus medos, suas feras guardadas...
Alheios ao tempo, já nem mesmo reconhecem sua verdadeira face que os anos carcomeram, ficou uma juventude perdida, esquecida com a perda da inocência, ficou misturada com animais bestiais que cresceram moldados ao ócio. O coração amaecido que passa a viver por viver, sem razão, apenas bate por bater, não mais sente.
Comecei a andar pelo corredor das Almas ali, senti o torpor, alguma coisa entre aqueles seres me impulsionava a continuar, eu conseguia ver através daquelas máscaras, e o que via me deixava enojado, eram monstros que usavam artifícios para subjugar os próximos a eles.
Era a máscara do patrão que orava aos domingos enquanto afastava o empregado de sua família e até mesmo de sua igreja só por não concordar com ela, e inconscientemente o deixava afastado, empregados longe dos filhos nos fins de semana enquanto ele, comerciário só queria saber dos lucros na loja enquanto em casa os filhos tinham febre...
Era a máscara do religioso que pregava algo que desconhecia, que temia, que não respeitava, usava isso para assediar a órfãos e viúvas como até já se foi escrito. E sob aquela pele a figura assustadora que se transformavam...
Era a máscara do que se entregou à política com a enganação a si mesmo que mudaria o mundo e nem mesmo mudou o próprio comportamento de bufão e larapio, enganador e pregador...
Era a máscara do medo que alguns possuíam pela perda, perda de outros, perda de poder, de bens, de coisas, simplesmente coisas...
A máscara fétida do ser pobre de vontade, que apenas caminha ao mundo sem crescer, seu monstro causava repulsa, afastava...
O cheiro de todo este espólio abriam espaços em minha mente que eu não conhecia, eu andava e identificava as máscaras, a avareza, a gula, a cobiça, a fome, a sede, a ignorância... Eu queria para e queria voltar.
Aquele aroma. Excedia uma vontade ardente em rasgar minhas vestes, me despir, e entregar ao holocausto. Era uma necessidade quando entre pelos corredores de retirar qualquer lembrança daquele povo e da folia, como se fossem pesos, cracas que me castravam a forma, o pensamento e meus desejos...
A primeira a sair aos pedaços foi a camisa, o babado desprendeu com facilidade, as mangas, o pano esfiapado voava com aquele vento forte que surrava minha vida. À medida que avançava, o calor aumentava, minha ansiedade também. Eu? Quem eu...
Não havia identidade agora, minhas mãos rasgavam incontinente a calça, meus dedos se feriam, o sangre caia em gotas pelas pedras quentes em que eu pisava, e como mágica sumiram, apenas arranhões e filetes de sangue ficaram, agora o cheio mudou e meus pés estavam de meias brancas sentiam o frio da pedra apesar do calor, apenas um patuá pendia ao meu pescoço, um paninho de seda amarela com um a oração a São Jorge, costurado com linha vermelha, me sentia idiota vendo minha masculinidade balançar semi excitado devido ao calor.
Minha raiva ainda não se dissipara... Minhas meias saíram ao esfregar um pé ao outro, então senti... Meus pés tocavam a relva úmida pelo orvalho, meus olhos fecharam e eu respirei procurando o ar que rarefeito me aceleravam o raciocínio... Mexia os pés tentando absorver aquela hidratação noturna, uma maneira da terra suar... Agora mais calmo, refletia... Antes da quaresma há o carnaval.
Abri meus olhos e vultos dançavam, mas não era como naquele outro ambiente, era uma dança comunitária, tambores, caxixis, atabaques rompiam a noite com seus sons ritmados, mas não se ouvia o barulho, éramos livres do som no vácuo daquele lastro à beira do que seria um lago, tão grande que meus olhos se perdiam na escuridão e não viam o outro lado do lago.
Observei os dançarinos e nenhum deles possuía face, eram uma mancha luminosa, os movimentos leves que os transfiguravam e quase flutuavam na areia acinzentada da prainha... Parecia que as luzes modificavam a partir dos meus medos, assim quanto mais calmo ficava mais amenas, alguns seres me chamavam e eu os seguia...
Tudo mudava como corredores. Agora me encontrava frente a uma luz azulada, que crescia e baixava, parecia respirar, e logo mudou de forma assombrosa e me apavorei as árvores, as paredes, as cores, insurgiam em diferentes formas, um dos seres me deu um sinal e eu parei, as flores eram embriagadoras, me apercebi que estava nu e não sentia-me constrangido com os seres e vi-os também nus, eles não tinham genitais, apenas uma energia no plexo, luz forte eles em rosa e elas em violeta...
Apenas um ficou, seu rosa fraco vagava entre ele mesmo e o violeta, eu desejei seguir os outros e este me fez parar, eles pareciam flutuar sobre águas negras, me perguntava de onde surgiu esta grande piscina?! Dos lábios do ser surgiu um sorriso, e eu tentei falar, meus lábios se movimentavam, mas não existia a propagação do som... Ouvi a voz dentro de mim... Sim para tudo, sim eu sou andrógeno, sim eles foram e não vão voltar, sim você os conhecia, sim eu estou falando por pensamento, sim eu também vou sumir... Agora.
Ao piscar meus olhos, já não estava mais ali o andrógeno de mim, meu pensamento não parava de interpelações de como vim parar neste, lugar o que eu estava fazendo ali... Dei-me por mim com os pés imersos na água gelada, meu sexo encolhido pelo frio. Voltei a cabeça e uma senhora se despia à minha frente e me fazia sinais, retirava com imensa cautela uma segunda pele, aproximei e vendo seu desespero ajudei-a a se ver livre daquela cobertura toda enrugada, abismado via a nova pele lisa, jovial enquanto a outra era devorada por vermes... Brancos e com um olho só.
“Por que tem o carnaval antes da quaresma? Não sei se responderei a contento, acredito que ninguém ao certo sabe. Posso lhe dizer a minha opinião: é uma maneira de oferecer ao ser quando está humano um período de escolha, experimentar o pecado e o inferno antes de entregar-se à reflexão de si, pois a mudança só ocorre aí, mas nenhum o faz.... E ao mesmo tempo é destinado aos que desencarnaram a procurar olhar seus espelhos na terra. É, cada um de nós temos espelhos, pessoas que agem como nós, como se tivessem herdados nosso problemas, nossos vícios, nosso carma, então tentamos auxiliar, assim neste tempo de carnaval ninguém se assusta ao nos ver ou sentir e assim podemos ajudar. Eu consegui hoje uma vitória com um neto e por isso ganhei uma pele nova, isso faz tão bem por que recuperamos nossa memória, não sabe você que não ter memória aqui é perder-se ao caos e à tortura pela eternidade? Isso é o verdadeiro inferno, não ter lembranças...”
Minha ausência de mim me acusava, o frio aumentava, e o vulto de mulher me jogou um beijo e fez sinal para mim, eu olhei ao ponto que seu dedo indicava, vi um cais e um barco ancorado e o andrógeno de mim a me chamar, quando voltei-me para agradecer, não mais estava ali a senhora de imensa beleza... Me aproximei e ele me ajudou a subir ao barco, beijou-me uma das faces e disse ‘ até mais’ao meu ouvido... O barco começou a navegar e uma densa névoa tomou conta de tudo e nem mesmo o barqueiro eu enxergava, quando abri os olhos eu estava olhando as luzes das velas dentro da Catedral de Curitiba, meu pensamento afinou-se, dei de ombros a aquele dançar e sai... Já na porta voltei-me para dentro e vi de um lado ao outro, espíritos andarem desesperados e pedindo o céu, cadê meu céu... Soprando no ouvido das pessoas que o céu que esperavam não era assim...
Aqueles gritos de socorro ainda ficaram dentro de mim.