Eu me amo. Isso é um fato.
Existem coisas que não podem ser ditas olhando olho no olho, porque o olho muitas vezes é arma mais forte que qualquer outra possível, mortal, instantânea. O olho que te enxerga além da alma e te rasga, dilacera, estraçalha, parte ao meio, fere profundissimamente.
Quando não, é tomado por um arsenal de lágrimas, água que te emotiva e tira o foco, não direciona na verdade o que de verdade quer dizer. As frases se partem, daí um prejuízo grande no processo de comunicação. A mensagem não chega, a comunicação não acontece e o que tinha de ser comunicado acaba sendo incompreendido, desestruturado.
Assim sendo vem o artifício da escrita. Escrever como ato de materializar o que te aflige a alma e da alma brota. Escrever como exercício comunicativo, como ato de criação ou de transformação do pensamento envolvido, perder-se em palavras, definir-se, descrever-se. Transformar-se em código, em signo. Deixar a consciência correr em fluxo e como se fosse um monólogo, fazer da escrita a coisa feita, registrada. Embora o que se diga seja interpretado de forma contrária, está dito e sancionado. A escrita que te possibilita entendimento, interpretação e; O material fica como forma de prova do que foi dito.
Eu me amo. Isso é um fato. Amor este que me faz redimido. Isso me basta. Amar a mim mesmo sem cobrança. Amor construído, acreditado, sentido, inviolado. Eu me amo e possibilito a mim essa descoberta a cada momento vivido, a cada hora que passa, a cada dia por aquilo que acredito ser, realizo e me represento a mim mesmo, redundantemente. Amar a si mesmo sem remorso, sem agonia nem medo de arriscar, de sentir represália ou está submetido a... Assim vou inventando e reinventado a cada momento o meu eu, o eu que está em mim, que me salva. Este amor por mim mesmo é tão avassalador que me possibilita dizer, extravazar, escancarar esse amor que sou eu, que está em mim, que me faz externar o que os outros não dizem ou se dizem falam tão baixo mas tão baixo que nem chega a ser ouvido, compreendido. O estrondo da voz gritada para dentro de si, obesa, camuflada. Falam entre dentes trincados, cheios de ódio, amofinados, com medo, discursos anônimos, ocultos que se perdem ao vento. E eu com isso, com os que os outros dizem ou pensam?
A gente não pede para nascer, a gente nasce, pelo menos é essa a realidade biológica, tirando a lógica, a realidade bio. Seres sensatos ou não, amam-se, se amassam e como ato de consumação, somos gerados. E daí todo o sofrimento. Toda falta de senso, por mais que se tenha tentado ao longo da história da humanidade constituir um ser pensante, chega-se a tantos anos de história e as mesmas coisas se repetem, a falta de entrosamento entre vivências, com a forma em que se vive e aquilo que criam como regra de conduta. A coisa caduca, a lógica ilógica que pensam que regem os seres e a pretensão absurda de camuflar a verdade, verdade? Qual na verdade? O que é inerente ao ser, de forma natural, mas como regra de conduta, o que se assimila pela experiência que se armazena pela vivência diária.
Definem nosso sexo, escolhem nosso nome, com quem ficamos, com quem parecemos. Vestem-nos com cores definidas não por gosto, mas por sinal de autoridade, de se renderem a pensamentos dominantes de seres que dominam por critérios sabem-se lá como são estabelecidos e exigem de nós odiarem as cores que são estabelecidas como sendo de sexo feminino e de sexo masculino e se pensarmos diferentes, imaginem as sansões, decidem por nós e dizem os direitos que todo ser humano nasce livre em direitos, pode? Daí vêm os brinquedos, as brincadeiras, os papéis sociais e nossos corpos. Somos frutos do resultado de compreensão da sociedade em que somos inseridos. Ensinam-nos a falar o que eles querem, se falamos diferentes, vem a repressão e os conceitos de errado, proibido, feio ou bonito. E nossos sentimentos? Como ficam a parte sensível do ser? Ou somos apenas razão, embora neguem a nossa metade pensante? Ama, não ama. Gosta, não gosta. Come, não come. Faz isso, mas não faz aquilo, tem que ser assim, vestir-se assim, sentar-se assim. O cabelo do homem é assim, já o cabelo da mulher, é dela... Quando crescer pode até ser, mas enquanto não cresce a regra é... As formas de poder que imperam, as relações de quem mandam e de quem obedece. A situação social é transmitida e você deve obedecer porque a lei é esta e não pode ser violada.
Infeliz de quem se constitui ser pensante, racional, humano. Infeliz de quem tem a pretensão de por em prática tantas coisas pensadas por grandes pensadores da história. Infeliz de quem ouve boa música, freqüenta bons lugares, adquire o hábito de ler, faz da arte não um passa-tempo, mas ver nela instrumento de vida, de conhecimento, de perpetuação da gratidão da vida. A arte que te transforma, que te forma, que estabelece um elo entre você e a condição de ser na essência da palavra. Na verdade, o que se espera de você é a mera repetição daquilo que já é. Se caso ocorra o novo e você deixa de ser o esperado, o ser para o qual você foi planejado e diga não e seja criação do novo, da nova visão ou de uma expectativa se rompa com os padrões estabelecidos, assina assim a sentença de morte. Morte social. É levado a chacota, a incompreensão, ao lado marginal da vida. Fazem de você bode expiatório, taxam-nos de louco, de desviado. Vêem com olhos de raposa e nem querem saber o que está em você, quem você é, o que constitui o ser que vive em você.
O que você tem que ser é um não ser. Sua vontade não pode prevalecer a não ser que seja a vontade estabelecida. Aí entra o desejo de posse: É o meu filho, a minha cria, o sangue do meu sangue, carne de minha carne. Você é o ser objeto, o desejo de posse. O latifúndio afetivo por ter sido criado sem ter pedido. Você deve sem ter comprado e sua dívida é por toda vida, para toda eternidade. Deve sentir-se agradecido aqueles por ter te tornado bio, lógico nunca, porque a lógica agride, maltrata e os seres, tidos humanos, não foram treinados para esse exercício. O exercício da reprodução sim, o cativeiro. Não o cativar, os elos criados. Todos senhores e escravos da mesma senzala.
Quando se faz contrário a tudo isso, se instala o caos. Ovelha desgarrada, ingrato ser amaldiçoado. O outro não te ver como liberdade e sim como instrumento de condição para explicar o que poucos conseguem entender. Parece confuso, mas não é, o que se evita é o óbvio.
Eu me amo e como ato de amor perfumo meu corpo com ervas do campo. Sonho. Planejo e me vejo refletido no futuro. Liberto-me da solidariedade de alguns e boto abaixo discursos sem cursos e sem cursores. A caridade? A piedade? São exercício diários que faço não como julgamento, mas como melhoramento para o que penso e se penso, logo sou... Eu me amo, já disse e grito isso até que me escutem. Não me rendo, não me entrego. Ressuscito a cada minuto morto pela intolerância e todos me engulam, de façam descer goela abaixo. Vejam com os olhos e me fuzilem, digam, xinguem, faça tudo isso porque se vejam refletidos em mim. Vivo a minha liberdade, contemplo a minha liberdade, eu sou liberdade, não a liberdade pregada nos direitos que não são respeitados, a liberdade que construo a cada dia. A liberdade que me bate a porta e eu não fecho. Escancaro, extravaso, dilacero porque tentam me encostar contra a parede... Ouso dizer o nome do amor que nasce de minha alma, porque eu também sou amor e o cheiro que me expeli dos poros exalam, exalam e exalam...
É preciso por abaixo a hipocrisia, esse discurso enfadonho, você me ama, mas restringe esse amor. Tem que ser assim. Amo-te na condição de... Esqueça. Para o amor não existe condição. Ou se ama ou se ama. Simplesmente se ama e isso é tudo. O amor não pode ser visto como algo prescritivo. O amor se constrói e dói construir amor.