Requiem aos mortos-vivos
Choram-se os mortos no dia de finados. Choro os meus mortos todos, sobretudo os que permanecem vivos.
Ver-te foi como que me deparar, abruptamente, com a lápide do túmulo de um morto que não se notou ter morrido. Teus olhos mostravam-me o epitáfio triste que eu lia sofregamente. Vê-se o túmulo mas não o cadáver, o que não comprova de todo o falecimento.
Foram tuas mãos que disseram com força não haver mais vida. Esvaíra-se, pois, de teu corpo, agora gélido. Não havia mais a seiva de outrora. Meus olhos não podiam chorar enquanto eu te velava. Contemplava o corpo aonde já não moravas. A alma de teu passado ficara presa em outro tempo.
Eu também morrera. Era mais difícil para mim, no entanto, morrer. Porque o fim era pavoroso e então desde sempre eu tentara resgatar a vida mesmo sem haver jeito. Contorcia-me como um animal semi-morto, tentando ressuscitar as coisas. Não voltavam, vamos sempre para a frente, para a frente, empurrando as sombras alegres e tristes de nossos mortos conosco para o desconhecido.
Não sei bem como chegamos à morte. Foste tu a me assassinar pouco a pouco enquanto de minha parte eu extirpava de ti a vida. Mataste um pouco de mim, eu um pouco de ti. Sobrou muito ainda em mim, de ti, o que não posso nem poderei nunca arrancar. Bem sei sobre minha culpa, eu a assumo. Corri à beira do precipício segurando-te pela mão. Suicidei-me também. Havia o nada ao qual lancei meu corpo.
Não sei como foi contigo mas, para mim, a morte foi traiçoeira. Não a percebi logo. Ela estava comigo, porém. Aos poucos, fez jorrar meu sangue. Não senti de pronto: varavam-me agulhas finíssimas, que cresciam em quantidade, até fazer com que eu virasse um só corte imenso.
Então meu corpo desfaleceu, inerte, incapaz de escolher. Quem é vivo quase nunca escolhe a morte e, ainda assim, ela aparece. Tu estavas ao meu lado. Minha impressão é de que me velaste antes de eu perceber estar morta. Enterraste-me antes de eu saber que tu também morreras. Construíste uma lápide com epitáfio generoso e sincero, como não sabes não ser. E esse gesto de teu caráter doce fere a alma desta moribunda.
Ao passo que ainda velo teu corpo e tombo com teu túmulo pronto. Obrigaste-me a decifrar que estavas tão morto quanto eu. É que sofro a falta, a ausência é dolorosa demais. Teu funeral será ainda mais belo do que foi teu nascimento. Terás homenagens com discursos proferidos por mim e música por mim composta, tal como os nobres. Entoarei requiems e tocarei como jamais em vida ouviste. Decorarei com rosas teu túmulo e acenderei nele incensos. Arderá sempre sobre ele a chama de uma vela que manterei acesa.
E, afinal, minhas lágrimas poderão cobrir como pérolas o mármore que te guarda. Serão como uma cascata, pois a dor que corrói se avoluma e precisará sair. Acaba, mas em mim não finda jamais o que acontece. Por isso espalho tanta luz: o fogo sagrado que cultivo como prova de minha devoção.
Após esse desterro, será minha hora de partir. Vestirei uma túnica branca bordada de fios de ouro e com aroma de jasmin. Dar-vos-ei minhas mãos e meu último olhar tenro. Entrarei sorrindo no paraíso ao qual ides todos, onde a música angelical acalmará meu espírito.
E poderei retornar à terra, outra, em paz com minhas lembranças, com a coragem de apenas existir.