DRUMMOND E OS BEATLES
DRUMMOND E OS BEATLES
Nelson Marzullo Tangerini
Comoveu-me, deveras, uma crônica de Drummond sobre o grande poeta nicaragüense Pablo Antonio Cuadra, silenciado pela censura marxista do governo sandinista, que considerava sua poesia burguesa e ultrapassada.
Cuadra, ainda que “emparedado”, fez sua missiva chegar às mãos do poeta de Itabira, através do Professor de Línguas Neolatinas e anarquista romeno Stefan Baciu. Humanista, Drummond comentou sobre o assunto em sua coluna semanal no Jornal do Brasil, num momento em que muitos intelectuais de esquerda viravam suas costas para Cuadra e se omitiam.
Baciu, que escrevia para a revista Guángara Libertária, feita por anarquistas cubanos exilados em Miami, EUA, morou no Brasil e fez amizade com o também anarquista Edgar Rodrigues, 82 anos, autor de 48 livros sobre o movimento anarquista no Brasil e no mundo.
Escrevi a Drummond, pedindo o endereço do poeta nicaragüense. Pensei em escrever-lhe algumas linhas, enviando, também, a minha solidariedade.
Junto, enviei ao ilustre itabirano uma tradução de Imagine, bela canção libertária do “sonhador” John Lennon.
Responde-me o poeta de Itabira:
“Rio, 7.IV.1984
Nelson Tangerini.
Não tenho o endereço do Pablo Antonio Cuadra, e receio que a correspondência dirigida para a redação de La Prensa, em Manágua, não chegue às mãos dele. Minha comunicação com o poeta se faz atualmente via... Honolulu. Escreva aos cuidados de:
PROF. STEFAN BACIU
UNIVERSITY OF HAWAII
DEPT. OF EUROPEAN LANGUAGES
1890 EAST-WEST ROAD
HAWAII 96822, ESTADOS UNIDOS.
Obrigado pela tradução de John Lennon. E o abraço do
Drummond.”
Sempre antenado com as boas coisas que aconteciam no mundo, Drummond reconhecia e admirava a música revolucionária e talentosa dos Beatles, a maior banda de rock de todos os tempos. Tanto, que traduziu algumas canções dos quatro rapazes de Liverpool. Os textos foram publicados na revista Realidade em março de 1969.
Ei-los:
OBLADI, OBALADÁ
De Lennon & McCartney
Desmond tem um carrinho na Praça do Mercado.
Molly vocaliza num conjunto.
Desmond diz a Molly: Por teu rosto sou vidrado.
Molly diz-lhe: O quê? E pega-lhe na mão.
Obladi, obladá, a vida continua: olá,
Olalá, como a vida continua!
Obladi, obaldá, a vida continua... Olá.
Olalá, como a vida continua!
Desmond toma o ônibus, vai à joalheria,
compra anel de ouro de ofuscar
e leva-o a Molly, que espera junto à porta.
De anel no dedo, eis Molly a cantar.
Em um par de anos terão construído
um lar bacana doce que nem cana.
Um par de garotos corre pelo pátio
desse casal unido.
Olha Demond feliz na Praça do Mercado.
Ao lado, os molequinhos ajudando.
Molly ficou em casa se enfeitando
e à noite ela ainda canta no conjunto.
E se querem se divertir, obladi, obladá!
PORCOS
De George Harrison
viste os porquinhos
rebolando na imundície?
Para todos os porquinhos
a vida está cada vez mais difícil
e brincam sempre na sujeira por aí.
Viste os mais taludos porquinhos
em suas engomadas, alvíssimas camisas?
Olha os mais taludos porquinhos
em algazarra na imundície
com camisas alvíssimas a folgar por aí.
Em seus chiqueiros, plenamente protegidos,
ao que vai por aí nem ligam.
Nos olhos deles falta uma coisinha:
precisam mesmo é de suma porcaria.
Por toda parte há muitos porquinhos
vivendo suas porquinhas vidas.
Podes vê-los para o jantar saindo
com suas porquinhas mulherinhas
de garfo e faquinha para comer presunto.
E POR QUE NÃO AQUI NA ESTRADA?
De Lennon & McCartney
E por que não aqui na estrada?
Não há ninguém para ver nada.
E por que não aqui na estrada?
A música dos Beatles, que um dia emocionou o maestro Rubinstein, tocou, também, o vasto coração do poeta itabirano Carlos Drummond de Andrade.
Nelson Marzullo Tangerini, 53 anos, é escritor, jornalista, poeta, compositor, fotógrafo e professor de Língua Portuguesa e Literatura. É membro do Clube dos Escritores Piracicaba [ clube.escritores@uol.com.br ], onde ocupa a Cadeira 073 – Nestor Tangerini.
nmtangerini@gmail.com, nmtangerini@yahoo.com.br