O BOM LADRÃO

Depois de chover praticamente o dia todo, ao cair da noite o tempo havia clareado. Quase deixei a sombrinha dentro do armário da sala de aula. Pensei: melhor não, pode recomeçar, sei lá.

A brisa lá fora prometia bom tempo, enchi os pulmões e caminhei alegre pela estreita rua em direção ao terminal de ônibus. As poças d’água, o calçamento molhado, tudo concorria para acender a imaginação.

Uma tarde assim é favorável a um programa a dois no escurinho de um cinema ou rever alguém que não vemos há muito tempo. Quem sabe, um encontro num lugarzinho discreto, nesse caso, seria imprescindível a chuva tamborilar na vidraça para o aconchego ser completo.

Sorri dos pensamentos, apressei os passos antes que escurecesse. Queria estar em casa onde os filhos, talvez o marido estivessem à minha espera.

Dei pouca importância ao adolescente, ao vê-lo passar cabisbaixo e esbarrar em mim, apesar de haver espaço na calçada. Estávamos sozinhos na rua, lá adiante apenas o muro do cemitério e mais ninguém.

Quase na esquina ele parou e voltou-se. Imaginei tratar-se de algum aluno desejoso de trocar mais dois dedos de prosa. Esbocei um sorriso amigável, ah, esses adoráveis adolescentes. Todos cabem na mesma fôrma. Gosto de ouvi-los, imaginações férteis a voar muito mais alto do que suas idades.

Vi alguma coisa brilhar e sumir rápido sob o seu casaco de jeans surrado. Escondeu-a desajeitado, sem me encarar gaguejou: Ande, me dê logo o que tem nessa sua bolsa.

Assim, sem mais nem menos. O coração pulsou forte, falhou uma batida. Devo ter empalidecido, tentei segurar o tremor dos lábios, em vão.

Olhei em direção ao muro do cemitério e a sensação de desamparo dominou-me. Pensei em meus filhos a esperar em casa.

Nenhuma raiva, só compaixão. Podia ser um deles. Meu Deus, ainda mal começou a viver, que futuro lhe restará?

Ouvi o tremor de minha voz como se viesse de outra pessoa: Sou tão pobre quanto você – afirmei - Sou professora e não ando com dinheiro, meu filho. Tenho os passes de ônibus, você quer?

Percebi que suas mãos estavam trêmulas, hesitante, nervoso, sem coragem de olhar para mim, continuamos a andar cada vez mais depressa. Eu não parava de falar: Você me pegou de surpresa, quem sabe, se vier amanhã, trago algum trocado e lhe dou? Já viu, esse é o meu caminho, não viu?

Perdera por completo o controle, estava mais para um disco arranhado de antiga radiola de ficha. Nunca poderia imaginar situação tão ridícula, ao mesmo tempo sem saída.

Chegamos ao fim da Rua do Pombal, lado a lado como velhos companheiros ou mãe e filho a passear na tarde cinzenta. A qualquer instante poderia ser o meu fim, antes de a chuva recomeçar poderia cair fulminada numa daquelas poças d’água.

Nem lembrava mais por que me encontrava tão longe de casa, desamparada, a vivenciar aquele pesadelo. O mundo inteiro se tornara nublado.

Súbito, como de um país distante chegou-me ao ouvido a voz do assaltante. Primeiro o vi tatear nervosamente o objeto faiscante, ocultou-o melhor sob o casaco surrado de jeans e disse: Tem gente mais pobre do que eu. Vá, vá logo, vá embora!

Acelerei o passo. Sem esperar nem olhar para trás agarrei a minha sombrinha como se fosse tábua de salvação. Ganhei distância, só então as pernas começaram a tremer como folhas de papel ao vento.

O coração descompassado dentro do peito pensei: Meu Deus, como é triste ver um menino virar ladrão...

Somente quando a porta do ônibus fechou atrás de mim soltei um longo suspiro aliviado. Quem haveria de acreditar?

MCC Pazzola