Escritor é profissão
Minha amiga Fátima Irene, poeta e escritora de qualidade, escreveu uma crônica essa semana contando as agruras porque passam as pessoas que escolhem como profissão aquilo que o senso comum não considera profissão. Foi funcionária pública, bancária por longos anos, até que um dia aposenta mesmo. Mas ela sempre escreveu. Tem vários livros publicados. E agora só escreve. Digamos que ela fosse, antes, bancária e escritora, ou até, já que podem não compreender direito, funcionária pública e escritora. É que para ser funcionário público tem concurso e mérito e para ser só bancário nem tanto. Hoje, aposentada e feliz, ouve o canto dos pássaros, conversa com a aurora, cheira o orvalho, flana na brisa, e depois transforma toda essa emoção em poesias, poemas, preces, textos de ânimo aos desanimados, e crônicas muito boas e divertidas.
Mas quando vai preencher o campo “profissão” em algum documento, acaba colocando “aposentada”, porque acham, nem sei de onde ou por quê, que ser escritor não é profissão. É profissão, sim. Ninguém valoriza e acha até que é função de desocupado, mas se vocês estão lendo é porque estão gostando, e se estão gostando foi porque alguém escreveu de forma que ficasse agradável. Isso dá trabalho. Se dá trabalho, precisa de talento e ocupa muitas horas. Se ocupa horas, temos responsabilidades, cumprimos prazos e vivemos disso, se não é profissão é o quê?
Já passei por isso. Uma mocinha do estilo gerúndico me disse certa vez: “Pode estar sentando aí, meu senhor, que eu já vou estar preenchendo o seu cadastro”. Quase vomitei. Lá vai...
- Nome?
- Zé!
- Endereço?
- Lá!
- Telefone?
- Aquele!
- CEP?
- 12345-678!
- Profissão?
- Escritor!
- Como?
- Escritor!
- O senhor não entendeu. A sua profissão mesmo?
- Escritor!
- Mas...
- Escritor, minha filha, aquele que escreve para os outros lerem!
– Desculpe, senhor, mas é que eu preciso colocar aqui uma profissão. O senhor vive do quê?
- De escrever!
- Um momento, senhor, que eu vou estar consultando a minha tabela aqui... deixa ver... a... b... c... d... e.. es... esc... não, senhor essa profissão não tem.
- Como não tem? Tem cantor?
- Vou estar verificando... a... b... c... ca... can... não, também não tem.
- E o Roberto Carlos é o quê?
- Cantor...
- Então, e eu sou escritor!
- Ahn, é, sei... não sei... vou colocar ‘outros’!
- Não vai não! - disse eu quase aos berros - Tu vai botar aí que eu sou um escritor. E-S-C-R-I-T-O-R!!!”.
Não se trata de vaidade besta. O universo de leitores é pequeno no Brasil, poderia decuplicar, bem como aumentaria bastante o número de escritores. Todo leitor assíduo é um escritor em potencial porque, não sei se vocês já notaram, a gente aprende qualquer profissão fazendo de forma amadora aquilo que copiamos dos profissionais e, de tanto praticar, vamos melhorando e se for a nossa praia escolhemos como profissão. Isso vai de desossador de bovinos e assistente de lixeiro. As coisas não brotam e nem aparecem do nada. Quando se abre a torneira o que se quer é água limpa. De onde veio a água, a captação, tratamento, tubulações, caixas d’agua, distribuição, etc, não nos passa pela cabeça. Queremos só beber água ou tomar um banho. Mas bem que notamos quando a água que sai sempre límpida um dia parece suja. Aí xingamos o fornecedor sem nem saber o que foi que ocorreu.
Sabe que fico imaginando que se acontecer uma desgraça e cair um avião nas minhas mãos e eu não conseguir mais editar o site, é bem capaz que alguns comentem: “Esse Caparica não tem persistência mesmo. Já nem escreve mais...”.
Fui buscar nos registros do governo. Escritor é uma profissão, sim. Tem até o “Dia do Escritor”. Todo dia 25 de julho. Decretado por lei. Coisa chique. Mas é assim. Tem só duas tabelas que encontrei na internet. A que traz uma relação de 912 profissões é do Ministério da Justiça, Departamento de Polícia Federal. Que coisa mais estranha. Essa tabela deve ser ainda do tempo da ditadura, onde se a gente fosse compositor, escritor ou o que fosse do ramo era suspeito e dependendo do nome era até preso para averiguações. Mas não é o caso. É para emissões de passaportes e pasmem, tem até a profissão de desempregado, que é a pessoa que se ocupa em procurar emprego todos os dias.
Mas tem também pugilista, prostituta (código 800 para os curiosos), babá, biscateiro, presidente da república, governador, senador, deputado federal, estadual, prefeito, vereador e outras profissões que nunca lhe passaram pela cabeça. Escritor é uma profissão cujo código é 546 (quinhentos e quarenta e seis). No jogo do bicho é do grupo 12, “elefante”, e quem jogar no escritor e der na cabeça (1º prêmio) ganha R$ 250,00 para cada real apostado. Nem é um mal negócio.
Já a segunda tabela eu fiz de tudo para conseguir encontrá-la no site do Ministério da Fazenda, Receita Federal, que quer saber tudo, e deveria ter até mais profissões que a Polícia Federal, mas não é o caso. Nem consegui a tabela por lá. Mas o site UOL informou em seus serviços para quem declara imposto de renda, que a lista encurtou. Agora escritor, crítico literário e redator vai tudo para o mesmo saco.
Catço... desde quando crítico literário escreve? Ele lê muito, conhece a arte mas a tarefa é outra. É avaliar antes o que leu para direcionar a leitura dos que nele crêem. Um redator conta uma história apurada, levanta os fatos e descreve. Já o escritor, me perdoem a absoluta falta de modéstia, é um artista. Não é um técnico como os anteriores. O escritor faz nascer uma obra, um texto, uma estória, que pode até virar um filme, virar moda, revolucionar o mercado de bugigangas. É só pensar em Harry Potter que o que eu digo grita aos olhos.
Há uma verdade que precisa ser dita. Os senhores consumidores de arte em geral precisam entender que se há o que ler é porque alguém escreveu. Se há o que assistir é porque alguém filmou, produziu. Se há o que ouvir é porque, antes do cantor poder ir ao estúdio, alguém fez a música (sem contar os sempre anônimos músicos, técnicos, engenheiros de som, e muitos outros). Alguém escreveu a letra, outro alguém colocou uma melodia. Há casos que o cantor é também o compositor, escreve e musica suas obras. Parabéns pelo talento. Mas a maioria dos deliciosos sucessos de Roberto Carlos, só para citar um cantor que dispense apresentações, não foram compostas por ele. “Detalhes” foi, junto com Erasmo Carlos, mas “Outra Vez”, aquela música que o próprio ‘rei’ diz que é “daquelas que grudam na gente”, é de Isolda, uma das mais brilhantes compositoras do Brasil e ninguém sabe nem quem é e nem seu rosto. Pelo menos pode ir à feira do bairro em paz.
Quero estender essa crônica aos injustiçados escultores, desenhistas, artistas plásticos, cordelistas, atores em geral, bailarinos, palhaços, malabaristas, paisagistas, às prostitutas já citadas, e outras profissões tão dignas, ou até mais dignas, que tantas outras que enchem os olhos dos ignaros. Pode puxar a lista do Ministério da Justiça, Departamento de Polícia Federal, que terá lá um código oficial para a sua profissão. Mas 546 não, negão, que esse é só para escritores.
Numerinho bonitinho, né? 546. Gostei.
03.11.2008
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