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Dia dos mortos

 

A minha história começa aqui. Não. Apaga isso. Minha história começa ali, do ponto de partida em que eu estava antes. Não. Melhor começar por ontem. Ontem foi um dia legal. Foi diferente. Parei num meio-andar. Não sabe o que é isso? É quando o elevador pára num lugar entre um andar e outro. Tem um cimento no meio. A porta se abre, mas ninguém tem coragem de sair. Vai que o elevador volte a funcionar e esprema a pessoa? 


Então, fica todo mundo ali, sem saber o que fazer, esperando a assistência chegar. Então, ontem foi isso que aconteceu de diferente. Foi legal. Tinha uma senhora hipertensa, uma mulher com uma uma criança no colo. A criança cheirava à cocô. E tinha também um cara, com a barba desgrenhada, com bafo de cachaça. Fiquei ali, pensando em como um simples problema no elevador, poderia mudar a rotina de todos eles. Ah! Já ia me esquecendo. Havia uma mulher, de saia preta, blusa bege, sapato de salto. Numa das mãos trazia uma pasta preta, de couro. A etiqueta à mostra anunciava: couro legítimo. Odeio mulheres que andam com pasta de couro legítimo. Geralmente, são todas falsas (elas, as mulheres que andam com pasta de couro legítimo!). 


O calor era insuportável lá dentro. A mulher hipertensa começou a gritar. A criança que cheirava à cocô começou a chorar. E o homem, com bafo de cachaça, tentava a todo custo acalmar todo mundo. Mas, no momento, só o que conseguia fazer era inundar o ambiente com o odor do álcool que, àquela altura, exalava também de seu suor... Foi legal. A mulher de saia preta, blusa bege e pasta de couro, permanecia inabalável. Não se mexia. Mulher insuportável aquela.


A assistência demorava a chegar. Já tínhamos ali uma convivência de, pelo menos, três horas. Mais um pouco e nos tornaríamos íntimos. Fiquei sabendo que o cara do bafo de cachaça havia se divorciado recentemente. Melhor ainda, havia assinado o divórcio no dia anterior e passara a noite toda enchendo a cara com os amigos. A comemoração, segundo ele, era pela liberdade, mas pelo tom da conversa, pela voz embargada, parecia mais de desespero. A puta me traiu - disse olhando firme nos olhos da senhora hipertensa. E esta, que estava prestes a ter um colapso por conta do elevador parado, pareceu entender que o seu sofrimento momentâneo, nem se comparava à dor de uma traição. E resolveu contar sua história.


Ela também fora traída pelo marido. Mas isso ela só descobriu sete anos depois da morte dele (do marido)... Ele não tivera culpa - fez questão de enfatizar. A culpada foi a amiga da filha (filha dos dois). A amiga vinha todos os dias em minha casa - a mulher hipertensa explicava. Vinha pra fazer trabalho de escola - acrescentou. E a mulher hipertensa, que trabalhava o dia todo na fábrica de óculos da família, não acompanhava os "movimentos" familiares. Só soubera da traição por causa da "reclamante que veio reclamar" herança na porta da sua casa. Fizeram exame e tudo. E não é que o filho da puta era mesmo filho do meu marido também? Filha da puta aquela moça, viu? Minha filha cortou relações com ela - fez questão de explicar a mulher hipertensa.


O calor no ambiente aumentava. A mulher com a criança que cheirava à cocô resolveu trocar-lhe a fralda. Sábia decisão. O moleque poderia ficar assado - aconselhou a mulher hipertensa. O cara do bafo de cachaça ofereceu o lenço que trazia no bolso. Provavelmente o mesmo lenço que usara para enxugar as lágrimas e assoar o nariz no momento de desespero da noite anterior. A criança foi deitada no chão do elevador. E, ali mesmo, foram expostas suas vergonhas e imundícies. No ambiente, um odor indescritível. O ser humano é mesmo apenas nudez, suor e cocô - pensei.


Dia interessante esse. Foi legal.


A assistência chegou. O elevador passou a funcionar. Paramos no térreo. Todos saíram sorridentes. Trocaram telefones, emails. Menos a mulher de saia preta e blusa bege, com pasta de couro legítimo e salto alto. Esta apenas ajeitou os cabelos (que nem precisavam ser ajeitados), levantou a cabeça e saiu, sem nem olhar para trás.


Eu continuei onde estava. Era apenas 10 horas da manhã. Tinha o dia todo pela frente a exercer minha função de ascensorista. Provavelmente, não ocorreria nada de anormal pelo resto do dia. E, realmente, não aconteceu.


Então, registre aí esse dia de ontem. Foi diferente. Foi legal.

 

(Adriana Luz - 02 de novembro de 2008)

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Adriana Luz
Enviado por Adriana Luz em 02/11/2008
Reeditado em 03/11/2008
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