Prepare seu coração
Quem não viveu aquela época talvez não tenha uma noção exata do que se passava: as poucas expressões de revolta vinham da literatura e da música. 1966, início dos anos em que vivíamos em perigo (como se hoje não fosse o caso).

Teatro Record. Festival da Música Popular Brasileira.  Quem hoje vê o poderio da Globo não pode acreditar que houve um domínio maior na formação da opinião nacional. Pois houve. A Record era a Globo de um Brasil menor. 70 a 80 milhões "apenas".

Jair Rodrigues entra no palco. Jair Rodrigues, o bom moço, freqüentador assíduo do programa da Hebe, coadjuvante humilde da Elis Regina, sambista de primeira, segunda e terceira. Ajeita  a gravata e sorrí seu riso solto, como só ele sabia.

Entram também Theo de Barros com seus óculos e seu violão, entra uma queixada de boi como instrumento (!), dois "conjuntos"(como se dizia na época), violas enluaradas e um misto de desconfiança e incredulidade percorre a audiência. Musica caipira no Festival da MPB?

Jair , de sorriso aberto e ingênuo, manso como um boiadeiro, se transforma em outra pessoa e transmite com toda solenidade a raiva e a energia de um boiadeiro revoltado, na maior e melhor interpretação que alguém já viu ou verá.

"Prepare o seu coração prás coisas que eu vou contar
Eu venho lá do sertão e posso não lhe agradar...

Aprendi a dizer não, ver a morte sem chorar
E a morte, o destino, tudo estava fora do lugar
Eu vivo prá consertar...

Na boiada já fui boi mas um dia me montei
Não por um motivo meu ou de quem comigo houvesse
Que qualquer querer tivesse porém por necessidade
Do dono de uma boiada cujo vaqueiro morreu...

Boiadeiro muito tempo laço firme e braço forte
Muito gado, muita gente pela vida segurei
Seguia como num sonho e boiadeiro era um rei..."

A platéia se rende. Alí estava o grito de uma geração, a volta do cipó de aroeira  no lombo de quem mandou dar. "Disparada" foi adotada por todos, de imediato.

Mocinhas com seus penteados-panetone e óculos "gatinho", jovens estudantes, senhoras  vetustas, até mesmo Chico e Nara, que fizeram "A Banda" cantar ingênua e lindamente. Todos se renderam à força estranha que estava no ar.

"Mas o mundo foi rodando nas patas do meu cavalo
E nos sonhos que fui sonhando as visões se clareando
Até que um dia acordei...

Então não pude seguir valente lugar-tenente
De dono de gado e gente porque gado a gente marca
Tange, ferra, engorda e mata mas com gente é diferente..."

Geraldo Vandré, um   ícone da bossa nova, autor de "Samba em Prelúdio" emerge das sombras joãogilbertianas jogando o banquinho e  o violão na cara da ditadura. Depois fez "Prá não dizer que não falei das flores" e foi silenciado.  Mas nós, jovens de então e eternamente devedores que tivemos alguém  que gritava e apanhava por nós, somos apenas gratos. What else can we do now? 

"...Mas o mundo foi rodando nas patas do meu cavalo
E já que um dia montei agora sou cavaleiro
Laço firme e braço forte num reino que não tem rei."

Essa era a esperança: viver num reino sem rei, onde gente não era gado. Vandré: valeu !

http://tigredefogo.wordpress.com/2008/02/17/letra-video-jair-rodrigues-disparada/




Nilsson
Enviado por Nilsson em 02/11/2008
Reeditado em 28/04/2009
Código do texto: T1260793
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