Visita

Acordou cedo, muito mais cedo do que costumava acordar, seu sono nem mesmo havia dado sinal de que estava para acabar. Levantou-se cambaleando e meteu-se no banheiro, espantou os resquícios de sono embaixo do chuveiro e voltou para o quarto. O terninho azul marinho, que havia usado há alguns anos no batizado de seu primo, estava sobre a cama e ao lado dele o par de sapatos pretos velhos, mas impecavelmente brilhantes, que, muito provavelmente, haviam sido lustrados pelo pai na noite anterior.

Não teve dúvidas, certamente sua mãe queria que ele vestisse o terno e calçasse os sapatos e ele não demorou, logo já estava pronto. Quando se botou diante do espelho, percebeu o quanto o dia estava silencioso, viu, atrás de si, um sol raquítico espremido para entrar pela janela, um céu tristonho e uma manhã pálida. Voltou-se para sua própria imagem no espelho, precisava da ajuda da mãe para ajeitar a gravata e pentear o cabelo. Como se tivesse lido os seus pensamentos, e isso era perfeitamente possível quando se trata de mães, ela entrou com o pente nas mãos, vestida com o especial vestido estampado de flores. Mas até as flores do vestido, antes tão bonitas e animadas, pareciam ter se compadecido daquele dia insosso e estavam de cara descolorida e amarrada.

Já de cabelos penteados e com a gravada aprumada no lugar certo, foi para a mesa. O pai já estava bebericando o chá de uma xícara. Sentaram-se e tomaram o café da manhã sem dizer uma só palavra, como se não houvesse nada para dizer, como se tivessem perdido as palavras, como se não houvesse mais nenhuma. O pai levantou-se e foi tirar o carro da garagem, enquanto a mãe terminava de ajeitar os talheres sujos na pia.

Entraram no carro também em silêncio, ajeitaram um vaso de flores amarelas no banco de trás e rumaram para o outro lado da cidade. Muitas pessoas pareciam ir para o mesmo lugar, com os mesmos olhares compenetrados, quase amedrontados, acuados, calados. Parecia que estavam sozinhos, como se houvesse um mundo inteiro para cada um deles e nada além daquela pequena viagem lhes importava, não desviavam os olhares, não piscavam, apenas seguiam, precisavam chegar.

Quando chegaram, já havia mais uma dúzia de outros carros parados no gramado seco ao redor do muro branco. Finalmente, desceram do carro, a mãe pegou o vaso de flores e conduziu-os até o portão, onde havia algumas pessoas conversado e fumando. Entraram, lá dentro o silêncio pesava toneladas e, por isso, só conseguiam mover-se muito vagarosamente. O garotinho segurava na mão do pai e olhava para a ponta dos sapatos, que pisavam sobre o cimento grosso das passarelas ladeadas por árvores velhas que estavam mais decadentes que o normal, por causa da chuva da semana passada. Vez ou outra, passavam por pequenos grupos de pessoas que murmuravam alguma coisa mágica, mas cheia de tristeza e saudade. Continuaram até encontrarem uma buganvília muito vermelha, ela quase não possuía folhas apenas cachos comprimidos e volumosos de flores fofas, bolotas de algodão vermelho. Saíram da passarela e por um estreito caminho de terra foram até a planta, quase uma árvore. Ela pendia sobre uma casa pequena, daquelas feitas para dormir sem acordar, para visitar e chorar, para esconder, mas nunca deixar perder, talvez, daquelas feitas para guardar, mesmo depois de acabar. Os três deram as mãos ao redor do túmulo e chegou a sua vez de murmurar para ninguém escutar. Era o dia de emprestar um pouco de vida aos mortos.

Fillipe Evangelista
Enviado por Fillipe Evangelista em 01/11/2008
Reeditado em 04/05/2018
Código do texto: T1260138
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