O BECO DA CARNIÇA ( Crônica do Dia das Bruxas e dos Bruxinhos)

“ Com Deus eu entro,

Com Deus eu saio,

Em armadilhas

Eu não caio”

Reza popular nordestina

Havia um beco onde os moradores do Bairro da Esperança jogavam entulho e também se desfaziam de animais de estimação mortos. Estamos em Cajazeiras,na Paraíba, a população em sua grande maioria, é de classe humilde, pessoas que não tem dinheiro para enterrar seus mortos humanos, quanto mais seus mortos bichos. Durante o dia, boa parte dessa gente evitava o Beco da Carniça, por causa do mau cheiro, por causa do lixo e do esgoto; outros, como eu, o usavam como atalho; afinal, para chegar na casa dos meus avós, só havia dois caminhos, pelo Beco ou dando a volta pelo seminário que demorava ao menos mais dez minutos de caminhada.

Sempre gostei de caminhos curtos, por isso nunca ouvi muito o que minha Vó dizia: “Caminho curto é o atalho de defunto”. Eu não tinha planos de morrer tão cedo, tinha apenas onze anos e muitos planos pela frente: seria famoso, publicaria um livro com as minhas memórias de iogurte, sexo e rock´n´roll; e veria o gibi com o final do confronto entre o Homem Aranha e o Mistério. Também não tinha medo das estórias assombradas que contavam sobre o Beco. Diziam os velhos em suas cadeiras de balanço coladas nas calçadas da Rua Luiz Paulo Silva, que há muito tempo, uma velha que todos consideravam ser uma bruxa, desapareceu ao entrar no Beco. Seria mais uma estória de gente sumida ou defunta, se não fosse pelas gargalhadas que toda noite ecoam de lá e todos dizem serem da velha penada.

Certa vez, fiquei até escurecer na casa de um amigo, assistindo filmes de terror. Ele tinha vídeo-cassete, eu tinha o dinheiro ( Na verdade, ele não sabia, mais eu tinha um amigo que trabalhava na locadora, que me cedia os filmes de graça) e assim em parceria, assistíamos todos os filmes de horror que minhas “finanças” podiam pagar. Já havíamos visto todos os filmes lançados do Jason Vorhees e do Freddy Krueger; a Volta dos Mortos Vivos e também o Exorcista, versão sem cortes. Era bagagem o suficiente para garantir que nada nesse mundo me assustava, por essa razão, decidi pela primeira vez, atravessar o Beco da Carniça á noite.

Era um breu só. Não conseguia enxergar nada entre a rua onde começava o beco e o outro lado, onde ficava o bairro que eu morava. Porém de tanto pegar aquele atalho, eu sabia o caminho de cor e salteado. Conhecia cada curva, cada mato, onde começava o esgoto e onde terminava a montanha de lixo, sabia até a parte onde a carniça começava a feder mais, em suma, atravessar o Beco durante a noite, não deveria ser nada diferente que de dia.

Comecei a travessia, pensando nos gibis que poderia trocar por siriguelas, nas provas da semana que entraria, e em Eliana, o amor da minha vida, ou seja, qualquer pensamento que não me remetesse ao beco ou a sua fama. Não que tivesse medo, afinal, eu era um especialista em filmes de terror e sabia que tudo não passava de ficção. Desci a trilha que começava junto ao muro do seminário e comecei a me desviar do riacho de esgoto que reconheci pelo cheiro; pulei o primeiro cachorro morto e continuei andando á esquerda do muro e á direita do entulho. Já podia ver as luzes do outro lado, e confesso, até respirei aliviado; e contente, pois eu poderia confrontar aqueles velhotes e contar que não havia bruxa nenhuma no Beco.

- Menino, o que você faz sozinho, atravessando esse beco? – disse uma voz, bem atrás de mim; era um senhor com uma lanterna na mão, também pegando o atalho.

- O mesmo que o senhor! – respondi olhando para ele. Era moleque desaforado, não tinha ainda aprendido a respeitar os mais velhos.

- Você não sabe que é perigoso, se a bruxa te pegar...

- Acho mais fácil, ela pegar o senhor, que deve ter a mesma idade. – respondi rindo, e dando as costas pro velho; esperei a resposta, mas não houve. Olhei para trás, não havia sinal do velho, nem da sua lanterna. As chances dele ter pulado o muro eram mínimas, e comecei a pensar um monte de besteira e sentir muito medo. E se o velho fosse o marido da bruxa? Quem disse que homem também não podia ser bruxo? E se as gargalhadas que o povo ouvia fossem dele e não da bruxa? Sem pensar duas vezes, comecei a correr, mas tropecei em algo e dei de cara nos restos de um gato morto. Descobri, olhando os restos do gato, que o escuro era de certa forma claro; e á minha frente jazia, centenas de restos de animais podres. Levantei-me com certo desespero e para a minha surpresa, o final do beco que parecia perto, estava ficando cada vez mais longe. Respirando com dificuldade, continuei a correr e tornei a cair. O medo estava me tornando cego para a minha memória do Beco, eu já não conseguia distinguir os detalhes, já não sabia onde pisava, nem onde pisaria e a angústia de cair em cima de algum outro bicho morto ou de cruzar novamente com o velho fez com que eu começasse a rezar uma oração de proteção que minha Vó me ensinara:

“ Com Deus eu entro, com Deus eu saio, em armadilhas, eu não caio

Com Deus eu entro, com Deus eu saio, em armadilhas, eu não caio

Com Deus eu entro, com Deus eu saio, em armadilhas, eu não caio”

Não adiantava, eu continuava tropeçando em bicho morto e o medo aumentava ainda mais, e o pânico, tomou de conta, quando comecei a sentir que havia alguém se aproximando com uma lanterna. Pensei em voltar e correr para o outro lado, mas já não conseguia me mover de tanto medo que sentia. A pessoa se aproximava cada vez mais e eu então me joguei no chão, preparado para o pior.

- Menino, o que você faz sozinho atravessando esse beco? – disse a voz. Não me movi. Ele continuou - Não tenha medo, quero lhe ajudar - olhei então para cima e vi um rapaz com uma lanterna na mão. Contudo, não senti mais medo, pelo contrário, o sujeito me pareceu ser do bem e de carne e osso. Senti proteção e alívio.

- Por favor... – pedi, com lágrimas nos olhos -... me tire daqui!

- Venha! – disse ele com a voz terna – Seja lá o que for já passou.

O rapaz me conduziu pelo Beco até o outro lado. Lá chegando, ele se despediu e avisou:

- Cuidado! – ele disse, com uma voz clara e serena – Não atravesse o Beco á noite. O problema não são os casos que o povo fala, é que você pode pisar em algum buraco e se machucar.

- Obrigado moço, por me salvar – eu disse, mas percebendo que ele voltava para o beco, avisei - mas por favor, não entre nesse Beco, eu vi...vi...um fantasma!

- Não se preocupe. Conheço muito bem o beco e, além disso, tenho a lanterna. – ele respondeu sorrindo e entrou no beco. Respirei fundo uma vez mais e fui para casa, precisava tomar um banho e me livrar daquele cheio de carniça.

Quando cheguei a minha casa, meu avô e outras pessoas conversavam na calçada, como faziam todas as noites, e mais uma vez, alguém contava algo sobre o Beco e as gargalhadas da bruxa.

- Não há bruxa por lá – corrigi a pessoa – acabei de vim do Beco. Há na verdade um fantasma de um velho com uma lanterna na mão. Nunca mais passo por lá.

- É o marido da bruxa! – disse Dona Nininha, nossa vizinha, com convicção – Eles eram como unha e carne. Quando a bruxa desapareceu, ele passava o dia inteiro a procurando, e todas as noites também, sempre com uma lanterna na mão, vasculhou todos esses becos e matos. Ficou doido, o coitado, e a molecada não tinha pena e ele era motivo de piada dos meninos da rua e desses velhotes faladores. Morreu de solidão e desgosto.

- Para com isso, Nininha, até você o chamava de bruxinho! – disse meu avô, dando risada, o que fez todos rirem também. Eu não entendia a piada, comecei a ficar irritado com toda aquela conversa, mas antes que deixassem os velhos para trás, ouvi ainda a Dona Nininha falando:

- A gente ri para não chorar, não é? E pensar que logo depois, o único filho do casal desapareceu também... isso faz a gente pensar, que desgraça foi essa que envolveu essa família?

- Mistérios, Nininha – disse meu avô – Mistérios...

31 de outubro de 2008

Frank Oliveira

http://cronicasdofrank.blogspot.com/