GALERIA DOS EXÓTICOS DE PICOS E REGIÃO

A VÉIA DO FOGO

A “Véia do Fogo” viveu em Picos e faz parte da galeria dos exóticos que conhecemos a partir dos anos sessenta. A história deles, na maioria dos casos, termina com a morte das personagens; isso não é artifício literário, apenas e simplesmente reflexo de um fato social brasileiro - o reconhecimento e a homenagem pós-morte. No entanto, que tributo tiveram os exóticos, mesmo depois de mortos? Nenhum! Por quase todo o país existem ruas com nomes de Coronéis assassinos, grileiros criminosos que enriqueceram espoliando os desvalidos, entretanto, onde já se viu uma homenagem justa a um pobre justo. Exceção é “Barrão”, a quem o povo de Picos homenageou atribuindo seu apelido a um bairro, dependurado na aba do morro, onde edificara um casebre rude e simples como o dono.

Foi por intermédio de Diassis que conhecemos a Velha do Fogo, mais precisamente, na porta do armazém Flor-de-Lis, pelo qual ela sempre passava à procura de algum agrado. Quem sabia exatamente o nome verdadeiro da "Véia do Fogo"? Talvez Diassis, para quem, com mais de cem anos, ela fez uma colcha de retalhos e deu-lhe de presente. Talvez chamasse Francisca, pois atendia pelo nome de Dona Chica ou, quem sabe, Francisca do Nascimento, porque, no tempo da escravidão, os patrões é que nomeavam os escravos nascidos na casa e, para não vinculá-los a laço familiar com seus senhores, davam-lhes os nomes Nascimento, Pereira, Santos e outros. Do mesmo modo que, nos Estados Unidos, ocorria aos Thompsons e Jacksons.

Dona Francisca era de cor negra, filha de escravo e escrava até os doze anos. Mesmo sem estudo, tinha lá sua sabedoria e gostava de gracejar da própria velhice. Para isso, usava contextos históricos brasileiros como incógnitas para não dizer literalmente sua idade.

- Quantos janeiros já conta, D. Francisca?

- Não sei quantos anos tenho, mas, no ano dos três oitos, eu tinha doze - referia-se à Lei Áurea, de 1888, e à sua libertação quando tinha doze anos de idade.

Seu apelido remetia ao próprio modo de se apresentar. Não pedia esmolas, mas qualquer pessoa que a conhecesse sabia de suas necessidades e já lhe estendia a mão com uma moeda. Como forma de agradecimento, dançava e cantarolava alguma música em língua desconhecida, pingando fogo e falando de sua vontade de casar. Acredita-se que nunca se casara, porque jamais citou um falecido marido. Todavia, falar em arranjar um companheiro era o assunto que mais lhe agradava.

Dava muita atenção quando abordada por conhecidos, ou mesmo estranhos, mas quem a chamasse de “Véia do Fogo” tinha de se afastar do alcance de sua bengala, senão o cacete comia, nas pernas, no lombo... onde ela pudesse acertar sua bengala.

A velha viajava a pé de uma cidade a outra, com um pano amarrado na cabeça, em forma de manto, e vestia roupas que iam do pescoço ao tornozelo. Muito limpa e cheirosa, não tinha cheiro de perfume de frasco, mas apenas e simplesmente de limpeza, de sabão de oiticica ou coco com o qual ela mesma lavava suas roupas. Morreu na década de oitenta, com aproximadamente 104 anos. Não se sabe com certeza se morreu. Saiu um comentário que a onça havia comido a velha. Comer o quê? O corpo, supostamente dela, estava intacto; nem fera, nem abutre ousou banquetear-se, nem mesmo os vermes. Foi encontrado um corpo, só o couro e o osso, debaixo de uma árvore entre Picos e Ipiranga, no Piauí. Provavelmente da “Velha do Fogo”, porque há muito tempo não carregava o peso de carne nas costas. Transportava sobre suas pernas cambotas apenas uma pele escura que lhe cobria a carcaça descarnada. Não havia carne para dar aos vermes; portanto, não existia cadáver, uma vez que este significa carne dada aos vermes.

A velha sabia reza braba. Cobra e nenhum outro animal poderia atingi-la. Morreu de fome ou sede, das duas coisas juntas ou nenhuma delas. Morreu com peso da idade. Se é que morreu, ou ainda continua pingando fogo por aí afora.

A VÉIA ROTA

Ela é outra personagem de vulto, ingressa na galeria dos exóticos de Picos. Nada menos que a "Véia Rota", suja, debochada e cachaceira;

a "Véia Rota" era bem diferente da "Véia do Fogo”. A Rota bebia uma cachaça amuada e ficava de fogo; a outra não precisava beber, parecia de fogo, queimando os últimos neurônios no circuito da linha final de chegada. Uma era limpa de boca e vestes; a outra, suja de tudo e, por isso, rota.

Montada no dragão de São Jorge, a Rota lançava baforadas de palavrões ardentes, enquanto a outra procurava agradar a seus simpatizantes prometendo presentes. A Véia do Fogo dizia ter um baú de ouro em sua casa e todo dia marcava a hora de dá-lo a Diassis, mas nunca pôde oferecer tal tesouro, pois não o possuía. Contudo, dava um tesouro bem mais valioso - a alegria de apresentar, na rua, sua dança afro e o gracejar com o príncipe de sua imaginação senil, o próprio Diassis, que, até então, era solteiro.

Deixemos a Véia do Fogo descansar em paz e brilhar entre as estrelas no infinito azulado e tratemos da Véia Rota, para quem abrimos esta página. A Rota jamais imaginou que sua história seria contada em um livro... Se o soubesse, talvez tivesse pintado a aquarela de sua vida com as cores do arco-íris. Ou pintou, com as cores que o mundo lhe ofereceu.

Dizem que quem não sabe rezar xinga a Deus, mas cada um conversa com Deus na linguagem que conhece, e Deus, que conhece todas as línguas, tudo ouve, tudo entende.

Ajoelhada diante da cruz na Rua São Benedito, a Velha dizia suas orações, sabe-se lá o quê. Ali, a dez metros do cruzeiro, estava o primeiro cabaré, o mais central por onde a Rota passava com seus trapos fedidos, até alcançar o centro da cidade e tomar sua primeira cachaça do dia. Foi naquele pedaço de chão, próximo à cruz do Redentor, que Milton Belo foi morto. Até hoje, não se sabe por quem, nem por quê. Talvez a Véia Rota orasse pela alma do finado Milton Belo ou por si mesma. Nunca se sabe o que se passa dentro de um coração fechado, nem numa vida sem amores, sem cores – uma vida em preto e branco ou só em preto, porque a cor preta é exatamente a de ausência de cores. Luto profundo de vestes e mente. Perdera ela o marido? Filhos? Perdera tudo que tinha, ou nunca tivera nada para perder!? Talvez um coração fechado para o mundo, mas aberto para Deus.

A Véia Rota estava em oração. Um transeunte, curioso com a cena incomum, resolvera perturbar o momento de intimidade com Deus daquela criatura tão desprezada pelos homens, mas decerto amada pelo seu Deus, tanto quanto outros pecadores que se vestem de linho fino e seda, mas por dentro, sepulcros pútridos.

- Tá rezando ou xingando a Deus, Véia Rota?

- Ô meu Deus! - disse a velha em voz alta - Tanto palavrão que eu sabia e agora não me lembro de nem um!

- Tá xingando a Deus, Véia Rota? – insiste o transeunte.

- Rota é a buceta da puta que te pariu, fii duma égua.

Aquela alma sofrida, um dia, foi chamada à presença do Criador. Sem medo, apresentou-se como era - despida de maldades e sem nada nas mãos.

“BARRÃO E FUCIM DE PORCO”

Joaquim e Valério, ou “Barrão” e “Fucim de Porco”, eram cegos. Um apenas das vistas, mas ambos de entendimento. Moraram em Picos, provavelmente, a partir dos anos cinqüenta ou sessenta e até o último momento de agonia. Joaquim enxergava das vistas e puxava Valério pela guia. Quem dava uma esmola ao cego, normalmente, dava também ao guia. Joaquim, o guia de cego, era aleijado; aleijado de feio. Cada um construiu seu casebre pendurado na aba do morro da Romana. O que enxergava, tinha uma visão panorâmica de quase toda a cidade. Um deles era casado ou amancebado com a irmã do outro. A molecada ficava de longe... Um gritava: "Fucim de Porco!”, e outro respondia "Barrão!" Para ouvir a enxurrada de palavrões que Barrão reverberava, enquanto “Fucim de Porco” mantinha-se em silêncio, como se a cegueira também lhe houvesse levado a voz.

Barrão deixou em Picos um bairro com seu nome, a Vila Barrão. Os dois rudes abandonaram seus casebres, também rudes, pendurados no morro, como duas orelhas mal acabadas. Suas cascas ficaram na terra e, com elas, as cruzes pesadas da pobreza, fome e maltrato. Eles lavaram suas vestes no sangue do cordeiro e receberam do Pai um anel de realeza.

ZÉ CÂMARA DE AR

Conhecemos “Zé Câmara de Ar” trabalhando como borracheiro no bairro Bomba, atualmente, São José. O local tinha esse nome, porque ali foram instaladas as primeiras bombas de gasolina da cidade de Picos.

Zé Câmara era uma das figuras populares, cujo nome de registro o povo não conhecia. Talvez fosse José com algum Silva, Pereira ou Santos no sobrenome, ou ainda Nascimento ou simplesmente “Zé Cama de Ar”.

Cheio de artimanhas, descobriu uns patos no quintal de Dr. José Gregório. Botou milho de molho e, em plena luz do dia, lançava um anzol com isca de milho por cima do muro e pescava os patos do doutor. Por acaso, Zé Gregório foi ao quintal e viu um pato sendo içado muro acima. Saiu de mansinho, sem fazer alarde algum; apanhou um revólver e rodeou o muro.

- Sim, senhor! Senhor “José Câmara “, é você que já pescou quase todos meus gansos, né? - disse isso apontando um trinta e oito, cheio de balas até a tampa.

Sem reação alguma, José Câmara devolveu o pato, ainda preso no gastalho do anzol.

- Corte a linha do anzol, Zé.

- Pois não, doutor. Eu só tava testando a isca; mas pega mesmo!

E ficou por isso.

Bem perto de sua borracharia, tinha um boteco no qual Zé tomava pinga, principalmente ao meio-dia e à tardinha para “fechar” o corpo e voltar pra casa. O tira-gosto ele trazia de casa. Não se sabe exatamente de qual casa... Logo de manhã cedo, deixava sua comida no boteco para quando fosse tomar uma. Normalmente trazia pato, miúdos de frango, moela, fígado ou algum pedaço pequeno; mas, quando ia tomar sua pinga, os pinguços das imediações já haviam comido o tira-gosto todo!

Um dia, caçando numa lapa nas bandas do Cristovinho, deparou-se com um ninho de urubu com dois filhotes. Os bichinhos eram brancos que nem galinha de granja e quase morreram de vomitar quando o viram. Querendo vingar-se dos “amigos” que comiam seu tira-gosto, levou os frangotes de urubu pra casa, preparou-os com bom tempero e, na segunda-feira, entregou-os no boteco, com a recomendação de não deixar ninguém comer. A galera estava de olho. Mais tarde, quando foi tomar seu aperitivo, quase nada restava do tira-gosto que trouxera; havia apenas um ou outro pedaço de pescoço de ave.

- Bote uma pinga pra mim e passe o tira-gosto pra cá. Só isso?! - disse o senhor José Câmara, olhando a migalha.

- Cadê o tira-gosto que mandei você guardar?

- Escondi, mas esse magote de cachaceiro entra e pega. Só sobrou isso! – Mostrou o prato quase vazio.

Zé Câmara fez a maior encenação:

- Eu mato, eu esfolo o filho da puta que comeu meus urubus!

A autodenúncia foi evidente; até o dono do boteco correu pra rua em ânsia de vômito.

“Zé Câmara de Ar” era um grandalhão que arrastava mais de 120 quilos de medo em sua massa muscular. Certo dia, manobrando o carro de um freguês, chocou-se com um veículo de Seu “Paizim”, e desceu, gritando:

- Seu Paizim, comigo é na paz e no amor. Se precisar matar, eu mato!

Que nada! Nunca matou. Seu porte avantajado assustava muito, mas só brigava de bate-boca, fazendo zoada feito besouro mangangá.

A cachaçada levou-o a fechar sua borracharia em Picos e a abrir outra para “fazer força” nos pneus das carruagens do céu.

NEGO BAMBU E AZULÃO

“Bambu” e “Azulão” eram chapeados, estivadores que descarregavam caminhões de carga nos armazéns de Picos. O nome chapeado vem de chapa, uma espécie de placa que comprovava filiação a algum sindicato. A chapa era presa a um chapéu de couro ou feltro grosso, com abas curtas ou mesmo sem abas, forrado por dentro e de aspecto meio oval, meio arredondado, à semelhança de um capacete, de modo que, quem não fosse chapeado, não podia trabalhar como estivador.

Azulão pesava mais de cem quilos de puros músculos e trazia sinais, na barriga, de perfurações à faca em outras desavenças. Chegou em Picos, não se sabe vindo de onde, e ganhou o apelido de Azulão pela cor escura de sua pele. Bambu era pacato, mas não levava desaforo. Antes, porém, de contarmos a briga de Bambu e Azulão, apresentaremos Bambu, como descrito por LIMA (2007, p. 171)

Ainda nos anos cinqüenta, certa vez, meu pai chegou de viagem trazendo consigo um garoto negro de uns quinze anos. O crioulo havia comprado tecidos e, como não pudera pagar, o avô sugeriu que fosse levado para prestar serviços em nossa casa, até pagar a conta. Inicialmente, o credor recusou-se, mas o garoto mostrava-se inclinado a acompanhá-lo. Sabia que o comerciante tinha recursos, boas propriedades e dinheiro, e, por conseguinte, poderia proporcionar-lhe melhor passadio do que lhe era possível ter em casa de seu avô e pai de criação. Atendia pelo nome de Firmino, mas logo lhe veio o adequado apelido de “Bambu”, pois tinha porte avantajado. Era esperto, trabalhador e de boa índole. Trabalhou por algum tempo e, mesmo depois que pagou com seus serviços tudo que devia, Bambu permaneceu conosco mais quatro ou cinco anos, vivendo em casa como membro da família. Saiu na idade adulta e voltou pra Picos. Casou-se e deu a seus primeiros filhos os mesmos nomes dos dois filhos mais velhos de meus pais: Neomísia e Francisco de Assis.

Bambu era forte e destemido. Azulão, também. Tomando umas cachaças num boteco, próximo a um cabaré, os dois desentenderam-se e partiram pra luta corporal. Amarraram entre si as fraldas das camisas, e cada um puxou sua peixeira. Enquanto Bambu cortava as pontas amarradas, Azulão desferiu-lhe um golpe na barriga. Terminada a briga, os chapeados tomaram destinos diferentes: um para a cadeia, e o outro, para o hospital.

Na cidade, corria o boato: “Azulão é doido; enfrentar o Nego Bambu, um nego que carrega três sacos de sessenta quilos de arroz de uma só vez, um em cada mão e outro nos dentes...”

No hospital, Bambu comentava: “Manim, eu levei desvantagem, porque fui cortar primeiro as fraldas das camisas”. De fato, se brigassem amarrados como estavam, os dois teriam morrido, com as camisas amaradas uma na outra, não havia espaço para defesa; só ataque. A expectativa da torcida de beber o defunto gorou. Ninguém morreu no conflito de gigantes e, daí a poucos dias, os dois galos de briga já estavam juntos, bebendo pinga.

Depois que partiu deste plano para um outro muito superior, Bambu recebeu a atribuição de apartar briga de bêbados na Terra; daí o dizer do povo quando dois estão brigando. “Tem que descer o bambu no meio dos dois e apartar a briga desses cachaceiros."

ZÉ MARCA HORA

À semelhança da “Velha do Fogo”, “Zé Marca Hora” também não pedia esmolas. Nascido muito depois daquela, partilhou da mesma vida de rua com as Véias Rota e do Fogo, Fucim de Porco, Barrão e outros que perambulavam, apenas de dia, pelas ruas de Picos. Não havia cidadão sem teto. Todos tinham seu cantinho para repousarem a cabeça, abrigados do sol, da chuva e do sereno da noite.

No final da tarde, antes de escurecer, Zé Marca Hora procurava os braços de sua amada, numa humilde casa campestre, nas bandas do Pajéu, provavelmente, um casebre de taipa, chão batido e paredes rotas; mas possuía um lar e família. Não se sabe quantos filhos, ou se os tinha. Contudo, tinha esposa, pois sempre se referia a ela para vender as vassouras que fazia. Dormia em casa própria, quem sabe, feliz da vida, pois nunca se queixou de carestia ou inflação, e jamais disse sentir fome e não ter o que comer. Mal nascia o sol, já estava ele outra vez percorrendo as ruelas da cidade, principalmente as estreitas ruas do centro, Coelho Rodrigues, Rua Velha, Rua do Cantinho e a Avenida Getúlio Vargas, na época, ainda residencial. Seu marketing de venda era sempre o mesmo ao bater à porta das casas:

- Dona, tome essa vassoura que mamué mandou pra sin-hora.

A dona da casa, apiedando-se dele, comprava a vassoura, ainda que no momento não precisasse daquilo. As vassouras de palha que Zé fazia, nalgum momento, poderiam ter sua utilidade na casa.

“Zé Marca Hora” era conhecido com esse nome por causa da precisão com que reconhecia as horas apenas olhando para o céu, mesmo sem sol. Fazia a adivinhação a qualquer momento; bastava que alguém o consultasse. Até a um menino, se lhe perguntasse as horas, ainda que por anarquia, ele respondia: “É tal hora”. Podia-se conferir que a diferença não era maior, nem superior a cinco ou dez minutos.

Não sei a hora, tampouco o dia em que José passou a consultar mais de perto o relógio do sol, pois não está mais em nosso meio. Mais de quarenta anos passaram depois que o vi, em 1965, já com idade avançada, entregando as vassouras que “mamuié” mandou.

PEDIM DE CESÁRIO

Não se sabe como Pedrinho conseguia forças para suportar sessenta quilos de sacaria ou caixas de produtos industrializados sobre seu corpo franzino e pequeno. Media pouco mais de um metro e sessenta, e seu peso não chegava aos sessenta quilos. Sem vínculo empregatício, conseguira a muito custo uma chapa que lhe conferia o direito de trabalhar como estivador. Fazia ponto, principalmente, na Avenida Getúlio Vargas e transitava com liberdade no centro atacadista de Picos. Gozava da confiança de grandes empresários, como Pascoal Silva, Major, Cambito, Isaac Batista e Diassis e tantos outros da Rua São Benedito, onde passava com menor freqüência à procura de serviço.

Além de não possuir a grande massa muscular necessária para lidar com objetos pesados, era coxo de uma perna, seqüela de algum acidente ou deficiência na formação óssea. Com esse porte físico frágil desde que o conhecemos, e debilitado pela escassez de recursos para ter uma alimentação saudável, sua vida útil como estivador durou apenas dez ou quinze anos. A partir daí, com as formas diminuídas, não compunha mais o grupo de sua classe profissional nas empreitadas para carregar ou descarregar caminhões, porque a escolha contemplava sempre os mais fortes. Por isso, Pedim ficava fora da equipe e sem trabalho.

Embora carente e merecedor de ajuda, jamais pediu outra coisa senão serviço, mas a oferta condizente com sua capacidade de trabalho tornava-se, a cada dia, mais rara. Por contingência da necessidade, prestava-se a dar recados entre os comerciantes e a entregar pequenas compras domésticas, empurrando um carrinho de quadro rodas - obra do artesanato criativo de algum marceneiro. O carrinho fora adquirido por um balconista do armazém de Diassis e entregue ao chapeado para que pagasse em prestações suaves, com os fretes que conseguisse pegar.

Sentado nos degraus de acesso à casa comercial do Sr. Isaac, acompanhava o movimento dos fregueses que saíam com pacotes e oferecia seus préstimos para levar as compras, na expectativa de receber alguma gorjeta. Olhar triste, vontade e necessidade de trabalhar para ganhar o pão, observava seus companheiros descarregarem uma carreta de Cimento Nassau. Dois chapeados ficavam em cima da carga e, normalmente, três recebiam os volumes e conduziam-nos ao interior do depósito. Um dos estivadores empilhou alguns sacos de cimento na beirada para agilizar a descarga. De onde estava, Pedim viu vários sacos de cinqüenta quilos deslizarem da carroceria, no momento em que passava um estudante de aproximadamente nove anos. Sem vacilar, lançou-se contra a avalanche, escorando com sua cabeça a pilha de sacos que caía, antes que ela atingisse o garoto. Nesse ato heróico, usou as últimas forças que tinha; salvou a vida do estudante, dando por ele sua própria vida. No acidente, quebrou o pescoço e teve morte instantânea.

ZECA MUNIZ

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Contando a história daqueles que já se foram, abrimos os anéis da memória coletiva de Picos para registrar, na forma escrita, aquilo que antes só existia na oralidade. Com essa prática, preserva-se sua própria história.

Nascido em família nobre, Zeca Muniz, fino alfaiate e um dos mais antigos moradores da Rua Velha, tinha o hábito de quase todo dia tomar umas biritas depois do expediente, na Praça Félix Pacheco, contígua à sua oficina, ora no Bar de Pipoca, ora no de Chaguinha Amaro, no Buraco do Tatu, ou em tantos outros que tinham suas tendas armadas e tocas escondidas por ali.

Certo dia, porém, tendo bebido além da cota de costume, viu-se sem condição de ir a pé até sua casa, na Rua Velha, a menos de oitocentos metros de distância de onde estava. Então, resolveu pegar um táxi.

- Pra onde vamos?

- Pra casa de Zeca Muniz, na Rua Velha.

O taxista entrou na rua indicada, na verdade, uma pequena praça, onde residia grande parte dos Leopoldos. O motorista deu uma volta, mais outra, e nada de o passageiro mandar parar o carro.

- Onde mesmo o senhor vai ficar? - indagou o taxista.

- Já disse que é na casa de Zeca Muniz.

Na esquina, uma senhora observava o movimento do táxi a contornar a praça várias vezes, quando, de repente...

- Dona, onde é a casa de Zeca Muniz? – perguntou o taxista.

Socorro de Lelísio olhou dentro do táxi e viu o primo Zeca descangotado no banco de passageiros. Com muito esforço, ele botou o pescoção pra fora e gritou:

- A casa de Zeca Muniz, não sabe onde é não? Coisa maluca!

Depois de viver muitos anos como peregrino deste vale de lágrimas chamado Terra, o alfaiate da Rua Velha mudou-se para o palácio real de seu Pai celeste, lá onde o sol da esperança não se põe, pôde revestir-se de vestes brancas, alvejadas nas tribulações, cujo alvor, jamais o olho humano foi capaz de contemplar.

O PRIMO BOLIVAR

Muitas pessoas procuram reunir os antigos colegas de escola, de quartel, de trabalho, e por aí vai. O objetivo maior desses reencontros é, sem dúvida, reviver as alegrias de fatos comuns, ocorridos em determinados momentos da vida. Com o primo Bolívar, não tivemos a oportunidade de repassar as páginas de nossa história, porque se foi muito cedo para o outro lado da vida. Agora, depois de sua morte, resta apenas refazer, na imaginação, os caminhos que percorremos juntos.

Fomos colegas no Exame de Admissão ao Ginásio, quando éramos alunos da Escola Estadual. Na verdade, esse exame era uma prova que se fazia para ingressar no curso ginasial, permitido aos candidatos que houvessem concluído o 5º ano primário. Era uma espécie de vestibular da época, e muitos dos reprovados abandonavam os estudos.

De manhã cedo, tomamos a Rua São Benedito em direção à escola. Durante a caminhada de dois quilômetros, trocávamos informações, partindo principalmente da parte dele, que morava há mais tempo em Picos e tinha acesso aos jornais que seu pai assinava. Isso, por certo, colocá-lo-ia mais a par das notícias que circulavam na cidade; então, enquanto caminhávamos, perguntou-me:

- Você soube que mataram Miltom Belo?

- Não; não soube. Nem sei quem é Miltom Belo.

- Ora! - disse ele.

Miltom Belo era o maior seresteiro de Picos; cantava fazendo seresta sem nenhum instrumento profissional, apenas batendo uma caixa de fósforos na palma da mão. Andava de branco e tinha uma voz de fazer inveja. Decerto, morto por engano de algum pistoleiro contratado para matar alguém que se parecia com ele, pois, ele mesmo, nunca fizera mal a ninguém.

Dizem que o tolo calado passa por sábio. Sem entender o que significava ser seresteiro, fiquei calado. Até que, no final da história, pelo contexto, pude acrescentar mais uma palavra nova a meu vocabulário, tão pequeno e frágil, trazido da comunidade rural na qual fui criado até os doze anos de idade.

Meu primo Bolivar era um epicurista, também afeito a um bom prato de cultura. Com quinze anos, arrastava cento e dez quilos de sabedoria em sua massa muscular e não se fazia de rogado se precisasse demonstrar seu potencial, quer fosse enfrentando uma luta corpo a corpo com o Nego Manezim, nosso primo mais velho, quer me enfrentando em debates de conhecimentos gerais e sobre Língua Portuguesa.

No final da segunda metade da década de 60, o amigo José Omar correspondia-se, por meio das páginas de uma revista, com uma alagoana, nascida na capital. Mas Zé Omar tinha pouca leitura e muita dificuldade para escrever.

Naquele tempo, uma revista brasileira publicou, em suas primeiras páginas, que a bandeira do Piauí era um couro de bode, ruída de muquiranas e por outros insetos perniciosos, coisas mais ou menos desse tipo. Se não foi exatamente assim, perdoe-me o editor, pois não tenho mais o exemplar.

A alagoana leu a matéria e resolveu escrever a José Omar, sugerindo que ele saísse do Piauí. Nervoso, chegou o correspondente com a carta na mão.

- Adalberto, vamos dar uma resposta adequada a essa alagoana? Olha só o que ela diz do Piauí.

A carta recebida estava recheada de advertências sobre o perigo de morar no Piauí, por certo, informações colhidas da revista “O Cruzeiro”, que havia publicado uma matéria difamatória contra aquele estado nordestino. Estávamos nessa conversa quando chegou Bolívar e, depois de lhe dar conhecimento do conteúdo da carta, veio a pergunta:

- Você topa me ajudar a responder essa carta?

- Vamos responder! - disse ele.

Zé Omar e Bolívar ditavam o texto enquanto o datilógrafo acionava as teclas da velha máquina Olivetti. A resposta finalmente ficou pronta e incluía alguns pitacos do jovem burocrata amigo de Zé Omar. Bolívar, então, fez subir seus 110 quilos sobre uma frágil escrivaninha do armazém Flor-de-Lis e leu o conteúdo da carta, impostando a voz como um bom advogado de defesa, gesticulando em grande discurso demagógico de mau político:

[...] Estamos ao dealbar de um Piauí crescente e desenvolvimentista; não é o Piauí que a revista “O Cruzeiro” retratou em suas páginas ferinas, de notícias distorcidas... Aqui não há insetos perniciosos, nem a bandeira do Piauí é um couro de bode. O repórter daquela revista, com certeza, queria arrancar dinheiro dos cofres públicos para patrocinar uma matéria sobre as maravilhas do Piauí, como o Delta do Parnaíba e a fantástica Sete Cidades de Piracuruca. Não conseguindo extorquir dinheiro do Estado, teve de comer couro de bode, porque não tinha meios de sobreviver ganhando a vida honestamente.

Tenho dito.

Bolivar desceu de seu púlpito improvisado, sorrindo para a juventude de seus quinze anos e, mais tarde, ingressou na Faculdade de Direito de Olinda, em Pernambuco. Agora, Dr. Bolivar Lima Batista prepara discursos para São Pedro ler na homilia do céu.

TÕE VÉI E CIÇO PAROARA

Filho de Júlio Verne, Tõe Véi nasceu na jurisdição de São Félix do Piauí, o pai tinha nome de gente famosa, mas era pobre e cego das duas vistas, ainda assim, capinava na lagoa, usando o tato como se fossem seus olhos, para diferenciar arroz de erva daninha. Criou a família sem depender de favores, nem ajuda do governo, ou se dependeu, não os obteve.

Na idade de dezenove anos, Tõe Véi resolvera procurar meios de ganhar a vida fora de casa, porque em São Félix as oportunidades de ganho eram escassas e acanhadas. Conseguira economizar o dinheiro da passagem de ônibus até a capital e um pouquinho a mais, o suficiente para alimentar-se durante dois ou três dias. A mala de viagem continha apenas um par de calças, três camisas, duas cuecas e um facão.

Antes de viajar ficara sabendo que na Praça Saraiva em Teresina, um senhor de apelido Ciço Paroara, contratava pessoas para trabalharem em fazendas no Maranhão e Goiás, oferecia bons salários, livres de hospedagem e despesas com o transporte até o destino.

Em Teresina encontrou-se facilmente com Ciço Paroara, um homem alto, musculoso e com cara de mau. Tõe Véi era alto e forte, porém uma alma inofensiva. Devido ao porte físico do candidato a emprego, Paroara o contratou e viajaram naquele mesmo dia, num pau-de-arara lotado de bóias-frias. Atravessaram o estado do Maranhão e no segundo dia, desembarcaram numa fazenda em Goiás. Todos foram revistados à procura de armas de fogo, ao descerem do caminhão. O facão de Tõe Véi fora classificado como ferramenta de trabalho, mesmo porque, deveriam usar foices, machados e facão para desmatarem uma área superior a mil alqueires.

Chegaram de noite no acampamento e jantaram uma gororoba feita com pedaços de abóbora doce e xerém de milho. Ocuparam uma estalagem que seria a casa de morada: um galpão sem paredes, coberto com palha de buriti e redes para dormirem. Na manhã do dia seguinte, antes das seis horas, um homem armado com um parabélum, sacudia um chocalho – era o despertador. Cada um recebeu um machado e após comerem batata-doce com café, foi-lhes mostrado o campo de trabalho, sempre sob a mira de uma arma. Não apenas de uma, cada equipe tinha um chefe armado para dar ordens e cobrar a execução dos serviços.

Durante três meses ninguém viu a cor do dinheiro do patrão, só serviços e ameaças: “Quem tentar fugir, morre”. Tõe Véi planejou sua fuga numa noite em que Ciço Paroara estivesse por conta do serviço de guarda. Pelo menos a este, conhecia melhor, tinham viajado juntos por dois dias seguidos e o livrara de ser picado por uma cobra, enquanto tomavam refeição à beira da estrada. Ciço parecia menos diabólico, quando se aproximava de Tõe Véi, talvez porque lhe devesse o favor de ter salvado sua vida. Tõe Véi contara sua história e seus sonhos de fazer um pé-de-meia e voltar para ajudar o pai, um velho cego com seis filhos para criar. Ciço também lhe confidenciara alguma coisa, dissera que largaria aquela vida de capanga de grileiro de terras e voltaria para o Ceará, logo que conseguisse dinheiro para começar um negócio.

Era uma noite escura. Não havia lua, nem estrelas. Tõe Véi percebeu que todos os bóias-frias dormiam, apenas Ciço Paroara , acordado, com a arma à tiracolo, postava-se no pátio como um militar vigiando um campo de concentração. Na escuridão, tateou sua mala e pôs o facão na cintura. O galpão não tinha paredes, mas ele preferiu sair pelo lado oposto à posição em que Ciço, como uma estátua viva, tomava uma xícara de café. Caminhando macio, entrou na mata e tomou a direção da estrada, atento a qualquer barulho de veículos ou latido de cães. Tudo silêncio, um silêncio de dar medo.

Tomara que Ciço não me tenha visto sair, porque se os capangas me alcançarem, não terei muita chance de sobreviver – pensava. Andou pela mata e só muito adiante pegou o fio da estrada.

Antes de surgirem os primeiros raios da barra, ocultava- se na mata, com o cuidado de não se afastar muito da estrada para não se perder. O dia todo ficava praticamente camuflado, imóvel e tirava a camisa para confundir-se com a ramagem. Caminhava a noite toda na estrada e de dia ocultava-se na mata, andando devagarzinho como quem caça um animal arisco. As primeiras horas viajou sem nada dormir, mas o cansaço abateu-lhe as forças e o fez procurar uma pequena clareira para descansar. Quando o dia amanhecesse, precisava procurar alguma fruta silvestre para comer, sem água e sem alimento não resistiria à jornada que tinha pela frente até atingir o Maranhão. Numa pequena clareira, havia um toco de uma grossa árvore e ao redor, não havia uma folhas, como se alguém houvesse passado por ali há poucos dias. Imaginou tratar-se de um foragido, que, como ele, teria encontrado uma cama a céu aberto para esticar o corpo. Tirou o facão da bainha e deitou-se ao lado dele.

A lua surgiu preguiçosamente e lançou frágeis raios de prata sobre aquele corpo cansado, estendido no chão. Um vulto, porém, postou-se à sua frente. Tõe Véi percebeu que era uma onça preta, talvez a dona da cama. Segurou no cabo do facão e pediu a Deus que não o deixasse ser devorado por aquela fera, no entanto, não retrocederia, nem demonstraria medo e nem faria o caminho de volta ao acampamento. Preferia ser devorado por uma onça, a viver como escravo de grileiro. O bicho esturrou, ele sentiu que fizera o serviço nas calças e disse para si mesmo. “Morre como homem, Tõe Véi. Levanta e enfrenta a fera”. Não precisou, bastou que se levantasse, ela deu outro esturro e pulou sobre ele. Tõe Véi tirou o corpo de lado e a onça chocou-se violentamente contra o toco. Ele se lembra de ter batido com o facão, ora acertando o toco, ora acertando alguma coisa peluda. Lutou até desmaiar e julgando-se vencido, não teve forças para entregar sua alma a Deus, simplesmente, caiu exausto.

Não sabia se morrera ou estava vivo, esperava uma luz, algo que revelasse o estágio em que se encontrava. Enquanto isso, sentiu uma dor enorme na perna e tomou acordo de si, estava sendo picado por um escorpião. Imediatamente, lembrou-se da onça, mas ela não estava por ali, nem viva, nem morta. Levantou-se, caminhou alguns metros, tremelicando e encontrou um umbuzeiro carregado de frutos, colheu uns três ou quatro e começou escavar o tronco da árvore com o facão, sabia que a raiz armazenava boa quantidade de água. Saciou a sede e depois alimentou-se fartamente de umbu. Não era seguro andar de dia na estrada, recobrou as forças esperou o sol se pôr e retomou o caminho, menos preocupado, já estava há muitas léguas do acampamento. Na terceira noite cruzou uma estrada, não se importando pra onde ela o levaria, mudou sua rota, precisava largar a trilha por onde os capangas dos grileiros trafegavam. Pegou a nova estrada e a partir daí, arriscou andar também de dia e fazer um pequeno descanso à noite.

Sentia muita sede, já estava no quarto dia de viagem, andara o dia todo na nova direção que tomara, mas nem sinal de gente, nem barulho de carro escutava mais, porém, não desanimou, não há estrada que não leve a algum lugar, haveria de chegar em local habitado. Subiu numa árvore, a muito custo, enxergou uma fumaça muito longe. Andou em torno de duas horas e deparou-se com um casebre de onde saiu uma velha.

- Bom-dia – falou com a voz arrastada de quem tem fome e sede.

- Quem é o senhor?

- Sou Antônio de Júlio Verne. Estou perdido, com fome e com sede. Fui contratado para trabalhar numa fazenda de Goiás e fugi depois de três meses sem nada receber. Faz quase uma semana que só como imbu.

- Pois você já está no Maranhão. Vou preparar uma comida para o senhor, mas só temos peixe seco e arroz.

- Tá bom demais! Mas por favor, primeiro me dê água. - Posso assentar nesse banco?

- Se quiser, pode até dormir, enquanto faço o almoço.

Exausto, Tõe Véi dormiu por algumas horas.

- Ei, o almoço tá pronto, venha comer.

A velha serviu a mesa, simples e rústica como a dona. Enquanto comiam ela disse:

- Eu sou viúva e tenho um filho morando em São Paulo, só não morri de fome ainda, porque meu marido me deixou esse filho. Agradeço a Deus todo dia, não preciso de riqueza maior do que um filho bom como aquele.

Tõe Véi contou sua história, como saiu do Piauí e como estava voltando, sem nada, com as mãos abanando, nem a mala trouxera de volta, deixara tudo no acampamento, somente o facão tinha apanhado, mas o esqueceu no tronco do umbuzeiro onde arrancara uma raiz para extrair água.

- Passa carro por aqui?

- Passa! Uma vez por semana, passa um jipe levando gente para o Povoado Sabonete, mas o dono do carro é miserável, não carrega de graça nem a mãe dele. Você tem dinheiro?

- Não!

- Pois tome aqui uns trocados pra pagar a passagem e fique na beira da estrada, já está na hora do jipe passar.

- Não sei como agradecer à senhora. Não tenho como lhe pagar. Deus lhe pague.

- Já pagou há muito tempo, Deus paga adiantado.

- Tô ouvindo barulho de carro.

- Pode correr pra estrada que é o jipe. Num precisa se despedir, se demorar, vai perder o transporte, aí, só na semana que vem.

- Inté!

- Inté!

Alguns anos depois disso, mais precisamente em 1984, conhecemos Tõe Vêi em São Félix, contratado para fazer a limpeza do Posto Avançado do Banco do Brasil. Tinha o maior respeito com o Supervisor e sempre procurava dar notícia em primeira mão.

- Seu suprevisor, o senhor ficou sabendo que Imbira Grande morreu?

- Soube, Tõe Véi. Indira Gandhi era conhecida mundialmente, fora a primeira mulher a ocupar o cargo de chefe do governo indiano.

MOCINHA E ALICE

Aportaram em Picos na década de 70 trazendo ainda pequenos João Batista e Expedita. Não se sabe exatamente de onde vieram. Talvez do Inhamum ou de outra parte do Ceará.

Usavam saias longas e blusas de magas compridas, passavam o dia quase todo na igreja e se as portas estivessem fechadas, ajoelhavam-se no cruzeiro ou no pé da porta. Isso lhes valeu o apelido de ratas de igreja.

A conversão de Mocinha veio através de um sonho dantesco do inferno que ela descrevia em pormenores: mulheres de saias curtas, maquiadas, cheias de pinturas e batom vermelho, dançando com o capiroto...

Não falava em marido, dizia ter tido uma “atrapalhada...” Jamais se referiu ao pai dos filhos. Se antes se conduzia pela concupiscência da carne, agora tornara-se beata e arrastara Alice à devoção e ao uso de vestes talares.

Todo início de ano Iracema preparava o uniforme escolar de João Batista, comprava o tecido e mandava confeccionar. Mocinha sabia em que porta bater: “Ei Iracema, vim buscar a farda de João Batista!”

Certo dia,apareceu irritada, nervosa por causa do serviço de alto falante que ela chamava de “bocão”. É que a “Luar do Sertão” tocava: “Eu falava, e você não escutava não, Iracema você atravessou a contra mão...E hoje ela vive lá no céu...” Finalmente, “Iracema, eu perdi o seu retrato”.

Depois de discutir muito com o alto falante, Mocinha queixou-se: “Dona Iracema, o bocão tava falando mal da senhora...Eu xinguei ele e mande calar a boca”.

GONZAGA DE BEMBEM

Toda segunda-feira elas visitavam o cemitério Pedro de Alcântara para chorar a perda de parentes falecidos e rezar pelas almas dos entes queridos.

O cemitério também era o esconderijo escolhido por Gonzaga, quando praticava um assassinato ou para curtir sua ressaca.

Para maior segurança, as piedosas mulheres chegam em equipe.

Naquele dia, Gonzaga estava em pé, no portão:

“Madrinha Cleonice pode entrar...ninguém bole com a senhora...”

Entraram Dona Cleonice, Dona Socorro Carvalho esposa de Joaquim Batista e outras mulheres.

Mais tarde, meio atrasada chegou outra que também viera prantear um parente e logo se dirigiu ao porteiro, pensando tratar-se de algum zelador ou coveiro do cemitério:

“Moço, que bom o senhor estar aqui. Estou com medo de Gonzaga de Bembem...”

Mas Gonzaga “é eu”. Se quiser entrar, pode. Aqui é um lugar bom para matar gente! Tá mais fácil de enterrar...”